Em Pernambuco, mulheres que antes trabalhavam sob a necessidade de suprir o sustento de suas famílias, hoje, além de cuidar dos seus, lideram um ecossistema de negócios que contribui para sobrevivência de outros lares. São empreendedoras que comandam cooperativas, geram empregos e inspiram outras mulheres. Por trás dessas histórias, está o cooperativismo, um modelo empreendedor que transforma comunidades e amplia horizontes por uma sociedade mais justa.
As cooperativas são organizações formadas por pessoas que se unem, voluntariamente, para atender necessidades econômicas, sociais e culturais comuns, por meio de uma empresa de propriedade coletiva e gestão democrática.
Diferente de empresas tradicionais, o foco das cooperativas não é o lucro, mas o fortalecimento coletivo: todos os cooperados participam das decisões e dividem, de forma justa, os resultados. De acordo com a Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB), esses modelos de negócios permeiam uma série de ramos, como agropecuário, crédito, saúde e consumo, bem como são reconhecidos por promoverem inclusão, geração de renda e desenvolvimento sustentável nas comunidades.
Cooperação e crescimento
Quem nasceu primeiro: o ovo ou galinha? A busca por essa resposta se arrasta por décadas, mas há um fato: os dois são protagonistas em uma cidade no Agreste de Pernambuco, região que concentra grande parte da distribuição avícola do Estado. A cerca de 200 quilômetros da capital, Recife, emerge a Cooperativa dos Avicultores de São Bento do Una (Coopave), um reduto de trabalho, garra e força feminina.
Juntamente com Petrolina, cidade localizada no sertão pernambucano, São Bento do Una é responsável por 7,29% do plantel da produção de aves de postura, de acordo com a Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA). E quem contribui diretamente para essa expressividade é uma das diretoras da Coopave, Valdejane da Silva Cavalcante, de 46 anos.
A história da mulher com o cooperativismo é repleta de alegrias e conquistas ao longo dos anos, mas começou de forma trágica. Em 2006, a então agricultora perdeu o pai e precisou arrumar emprego no comércio para sustentar a família. Assim, ela tornou-se um dos 7,6 milhões de brasileiros que foram empregados nesse setor à época, conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
“Eu sustentava minha mãe e meus irmãos, então passei cinco anos trabalhando em um supermercado, como supervisora de caixa“, conta Valdejane.
Apesar de a família da trabalhadora ter uma pequena granja de frangos de corte, o apurado não era suficiente para bancar as necessidades básicas. “A gente só tinha lucro quando o frango saía, que a gente vendia o esterco, mas era muito demorado”, relembra a trabalhadora. As dificuldades no negócio familiar a fizeram permanecer no comércio como a única oportunidade de garantir renda fixa.
O passado de Valdejane é semelhante ao contexto atual de milhões de mulheres brasileiras. Das 72.522.372 unidades domésticas do Brasil, 49,1% tinham responsáveis do sexo feminino, de acordo com dados do Censo Demográfico.
Os desafios em um emprego regido no modelo tradicional foram intensos para Valdejane. Apesar de trabalhar em horário comercial, o dinheiro, no fim do mês, ainda não era suficiente para sustentar de forma digna a família.
A mudança de vida e de perspectiva de negócio, porém, se deu com apoio de órgãos governamentais e privados. Após incentivo, a granja de frangos de corte da família da trabalhadora, a São Sebastião, que Valdejane conciliava junto com seu emprego em escala integral, se tornou parte da Coopave.
“Iniciei com 200 galinhas. Hoje, a gente tem 19.000 galinhas, graças a Deus.”, celebra Valdejane.

A entrada de Valdejane na cooperativa rendeu frutos, ou melhor, ovos. O aumento na quantidade de aves abrigadas na granja São Sebastião foi reflexo do crescimento de demanda, justificada pelo cooperativismo.
Hoje, toda a família de Valdejane é cooperada e trabalha na granja São Sebastião, que distribui os ovos para a Coopave e abastece os lares não apenas de São Bento do Una, como também de todo o Estado de Pernambuco.
Grata, Valdejane entende que sua missão em liderar a Coopave e conduzir a família é trabalhosa, mas privilegiada: “É uma plena confiança que eles enxergam em mim, porque tudo, até na cooperativa, eu quem resolvo”.
Empoderamento feminino, comunidade valorizada
Para a coordenadora da Comissão de Mulheres da OCB/PE, Juscileide Vieira, o desenvolvimento feminino ultrapassa a pessoalidade. “Quando uma mulher conquista a sua independência financeira, ela transforma não apenas a própria vida, mas também o ambiente ao seu redor, melhora as condições da família, estimula outras mulheres e fortalece a comunidade”, diz.
Segundo a Organização das Cooperativas Brasileiras em Pernambuco (OCB-PE), o Estado conta com cerca de 191 mil cooperados, responsáveis pela geração de 9,8 mil empregos diretos. A gestora estadual de projetos do Agronegócio, do Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas em Pernambuco (Sebrae-PE), Jussara Leite, salienta que o cooperativismo fortalece as relações sociais e comunitárias nos territórios onde atua.
“O impacto dessas ações é significativo para o desenvolvimento local e regional ao promover renda, inclusão, sustentabilidade e o fortalecimento da economia de base comunitária”, ressalta Jussara.
Conforme pesquisa publicada pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), realizada pela estudante Neuzeli Maria de Almeida Pinto, a participação das mulheres nas cooperativas e em outras organizações comunitárias é um fator central para o desenvolvimento e a melhoria das comunidades, principalmente as que se encontram em contexto de vulnerabilidade social.
De acordo com o levantamento, realizado com mulheres trabalhadoras da Cooperativa dos Catadores da Vila Emater (Coopvila), especializada na fabricação de móveis de madeira reciclável, a participação dos agentes femininos garante:
– Melhoria das condições de vida: o desenvolvimento do Projeto da Coopvila é visto pelas participantes como um fator fundamental para manter uma visão positiva da realidade, motivar a aspiração por novas conquistas e, crucialmente, para a melhoria das condições de vida da comunidade.
– Acesso a projetos e infraestrutura: a cooperativa é considerada de grande importância, pois, por meio da rede de relações que a associação mantém, projetos entram na comunidade, como a construção do galpão utilizado pelas mulheres para o trabalho com a madeira. Além disso, a cooperativa ajudou a obter o centro de produção, o poço e um carrinho para a associação, que auxilia em emergências de saúde.
– Liderança comunitária: a atuação das mulheres em vários contextos garante a elas maior autonomia e liderança comunitária. Elas assumem papéis de grande importância, como a presidência da associação (que antes era ocupada por um homem) e a participação ativa na igreja e na escola.
– Apoio social e interação: a comunidade é caracterizada por formar uma grande rede de parentesco e relações sociais. A veemente interação entre as mulheres, através das redes de apoio social, colabora diretamente para o desenvolvimento das atividades remuneradas.
– Reconhecimento político: o envolvimento das mulheres no processo de organização da cooperativa e a busca por melhores condições para a comunidade contribui para que elas se reconheçam enquanto sujeito político.
Quebra de tabu na liderança
Líder da Cooperativa de Sapucarana (Coopasa), a agricultora Maria Risonete Sampaio da Silva, 52, viu no cooperativismo uma oportunidade de renda e dignidade para sua família. “A gente vivia endividado e não tinha valorização da profissão”, diz.
A virada de chave para a à época professora veio quando ela decidiu, em 2007, inserir o seu negócio paralelo – de produção de hortaliças com foco em tomate – na Coopasa. No início, a sua mudança de carreira para uma atividade que era entendida, no período, como destinada aos homens, não agradou algumas pessoas próximas. “Minha mãe queria que eu cuidasse da minha família e da minha profissão que era ser professora”, conta Rosinete.
Liderar uma cooperativa não foi um trabalho fácil. A princípio, ela encontrou muito machismo enraizado, já que a maioria dos cooperados é composta por pessoas do sexo masculino. “Os homens, muitas vezes, têm com preconceito com a mulher, que acham que mulher não pode ter um cargo de líder e, principalmente, ser presidente de uma cooperativa”, desabafa.
Apesar das dificuldades, jogo de cintura e coragem não faltaram para a presidente da Coopasa que mostrou ser competente para realizar o seu trabalho. “Consegui quebrar esse tabu e agradar tanto os homens quanto as mulheres”, garante Risonete.
A persistência foi sua locomotiva para que, atualmente, não apenas ela, mas toda a sua família trilhasse o mesmo caminho. Hoje, mãe, filhos e marido da empreendedora também fazem parte da cooperativa.
Segundo o levantamento Anuário do Cooperativismo 2025 – que calcula os dados referentes a 2024 -, o percentual de mulheres que integram cooperativas em Pernambuco cresceu.
No ano passado, houve aumento de 11.7% no número de mulheres em relação ao anterior, como representado no gráfico a seguir:

Desafio semelhantes também foram vividos por Valdejane. Por ser uma das diretoras da Coopave, via nos cooperados homens resistência, por ela integrar o quadro de líderes. Mas o cenário mudou. “Hoje em dia nossa diretoria é composta quase 100% por mulheres”, revela Valdejane.
Diante de dificuldades persistentes, a promoção da valorização do trabalho das mulheres cooperadas, principalmente ofertando oportunidades de liderança, está nas ações do Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (Sescoop).
“Em regiões onde as desigualdades de renda e de acesso ao mercado de trabalho ainda são grandes, o cooperativismo surge como uma alternativa concreta para geração de renda, capacitação e valorização do trabalho feminino”, conta Juscileide Vieira, coordenadora da Comissão de Mulheres da OCB/PE e gerente geral da Coopexvale. O Sescoop promove uma série de qualificações destinadas a pessoas que querem ingressar ou se manterem atualizadas sobre temas relacionados ao empreendedorismo e, claro, ao cooperativismo. Saiba mais no site da instituição.
Ainda é longo – e desafiador – o caminho a ser trilhado e ocupado por mulheres que desejam ascender economicamente por meio do trabalho agropecuário. Segundo relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), trabalhadoras do campo ainda recebem 20% a menos que os homens.
Fortalecimento e protagonismo
Se antes muitas mulheres que residiam fora dos grandes centros urbanos eram fadadas apenas ao trabalho no campo ou no lar, hoje a realidade do interior dos estados demonstra outra configuração. E o cooperativismo tem um papel essencial nesse processo.
Em Pernambuco, a produção da agricultura familiar demonstra força e união por meio da atuação das cooperativas, que despontam mulheres em suas lideranças. “É uma oportunidade para as mulheres empreenderem por meio do modelo de negócio cooperativo e, para aquelas mulheres associadas, existe a oportunidade de se desenvolverem para participação ativa no empreendimento cooperativo, inclusive ocupando cargos na gestão”, diz a superintendente do Sescoop/PE, Cleonice Pedrosa.
O protagonismo feminino é sentido e representado, diariamente, pelas cooperadas, com união na liderança. “Através da cooperativa elas são mais respeitadas. Eu faço a comercialização da cooperativa e transformo vida de outras mulheres, tornando-as empoderadas e empreendedoras”, salienta a agricultora Risonete Sampaio.
Mulheres que, antes, dependiam dos seus maridos para transações financeiras básicas, hoje podem contar com a própria renda. Essa transformação se deu, por exemplo, por meio de ações que integram as cooperadas. Um exemplo é o projeto “Elas pelo Coop”, movimento nacional do Sistema OCB que busca fortalecer o papel das mulheres no cooperativismo brasileiro.
“O Elas pelo Coop nos impulsionou na nossa cooperativa. Isso fortalece a participação de mulheres na liderança, promovendo igualdade. Sabemos que não é fácil, mas devagar e juntas somos mais fortes”, diz a cooperada Valdejane da Silva Cavalvante.
Nos últimos dois anos, o Movimento Elas no Coop já reuniu mais de mil mulheres em ações voltadas a promover o empoderamento e desenvolver a liderança feminina. “As ações envolvem: corrida, palestras, mentorias, reuniões virtuais, assistência em educação financeira, empreendedorismo, entre outras”, elenca Cleonice Pedrosa, superintendente do Sescoop/PE.
Em 2024, o número de cooperadas cresceu 23% em relação a 2023, enquanto que a mão de obra feminina sofreu uma variação positiva em 4%, conforme dados relacionados Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo em Pernambuco.
“Esse avanço tem sido impulsionado por uma série de fatores: o trabalho das comissões estaduais e comitês nacionais de mulheres cooperativistas, a criação dos Comitês de Mulheres dentro das cooperativas, e o apoio institucional da OCB/PE, que vem estimulando políticas e programas de inclusão.
Também percebemos que as próprias cooperadas estão mais conscientes do seu papel e têm buscado ocupar novos espaços com protagonismo”, explica a coordenadora da Comissão de Mulheres da OCB/PE, Juscileide Vieira.
Desafios e futuro
As cooperativas são fonte de renda e transformação social, mas ainda são cercadas por desafios. Um deles é a falta de conhecimento acerca desse modelo empreendedor, conforme explica a gerente de Relações Institucionais do Sistema OCB Nacional, Clara Mafia.
“Não há uma compreensão total de que o cooperativismo é um modelo, em primeiro lugar, de negócios. É um modelo em que pessoas com dores e necessidades comuns se juntam, ou seja, é uma solução econômica em um modelo de empreendedorismo coletivo, que é o cooperativismo”, diz a gestora.
A gerente ainda destaca a importância de as cooperativas olharem para o futuro com inovação. “Para garantir que as cooperativas permaneçam viáveis e sustentáveis no tempo e compreendam que as mudanças que a gente tem no modo de consumo, na necessidade do cliente, sejam cada vez mais claras”, explica, acrescentando que assimilar essas mudanças é essencial para que as cooperativas inovem em seus modos de atuação.
Mais do que um modelo econômico, o cooperativismo tem se mostrado uma forma de fortalecer vínculos, garantir dignidade e transformar realidades, especialmente em comunidades onde o trabalho coletivo é a principal ferramenta de sobrevivência e progresso.
Mesmo diante dos desafios de gestão, inovação e adaptação às novas formas de consumo, as cooperativas continuam sendo uma ponte entre o indivíduo e o coletivo, entre o sonho e a oportunidade. Na prática, são negócios que, em vez do lucro, focam no bem estar e econômico das relações sociais.
Fonte: Leia Já












