Para o filósofo grego Aristóteles, que viveu três séculos antes de Cristo, ser feliz é viver seu propósito. E o que seria isso? Aristóteles entendia que o encontro entre o que você tem de melhor, o seu talento, com algo de que o mundo precisa é o seu propósito. Ou seja, fazer o seu melhor para atender uma necessidade do próximo é exercitar sua vocação, o seu propósito, e assim seria feliz. Mas, como descobrir isso? Raciocinando e conhecendo a si mesmo, para entender o que é capaz de fazer com excelência e como efetivar seu propósito, vivendo uma vida que vale a pena ser vivida.
O mesmo se aplica às empresas. O propósito é um substantivo que designa a razão pela qual a empresa existe, é a base da experiência entregue aos seus públicos e que a torna relevante e necessária à sociedade. Pode-se dizer que uma empresa efetiva, bem-sucedida, é uma reunião de pessoas em torno de um propósito comum, e que agem para concretizá-lo. O trabalho humano deve ter seu propósito pessoal, e dividir um propósito comum com a organização, para que tenha mais significado. Como disse Paul Collier, economista britânico em evento brasileiro, em 2020, ninguém se motiva a sair da cama para trabalhar tendo por objetivo unicamente gerar lucro aos acionistas. Além disso, na pandemia, os públicos aumentaram as cobranças por mais compromisso e transparência nas ações organizacionais, nos colocando de vez na denominada “era do propósito”.
HERANÇA QUE ESTÁ NO CERNE
O cooperativismo herda, desde 1844, um claro direcionamento do propósito a ser adotado: foco em apoiar pessoas, indivíduos com seus sonhos, desejos, necessidades. A realidade local é que especifica o propósito único de cada uma das três milhões de cooperativas pelo mundo.
Enquanto as empresas estão descobrindo (ou sendo provocadas pelas novas gerações a descobrir) a importância de se trabalhar por um propósito que coloque as pessoas no foco das ações, o cooperativismo já nasce com isso. Mas, precisa se lembrar desse “marcador em seu DNA”. Voltaremos a esse ponto em breve. Antes, vamos compreender por que estamos na era do propósito.
DEFINIÇÃO DO PROPÓSITO EXIGE EXERCÍCIO DE AUTOCONHECIMENTO
O propósito é algo que se descobre conhecendo a si. Por isso, nas organizações, é imprescindível que haja a representação de todos os setores e grupos no processo de sua definição, para que seja algo que de fato defina aquela empresa.
Especialista na área, Tatiana Costa, consultora organizacional, palestrante e mentora de carreira, comenta que a criação do propósito se dá a partir de um processo de questionamentos e análises da cultura interna, que desvela a razão de existir da empresa. Essa trilha passa por compreender o objetivo da organização, sua missão, visão, valores; questionar o que faz, como e porquê. Da participação dos públicos internos nesse processo surgem palavras-chave que vão compor a frase síntese do propósito, que deve desafiar as pessoas e ao mesmo tempo gerar nelas satisfação em participar.
Resgatando a teoria do círculo dourado, desenvolvida por Simon Sinek, que defende que apresentar um propósito rende vida longa, engajamento dos públicos e retorno financeiro às organizações, Tatiana reforça que a diferenciação da empresa não está no que ela faz ou como faz, mas sim no porquê faz.
“O propósito não necessariamente é uma lição única para a vida. Pode-se ter vários propósitos, de curto, médio, longo prazo. E não necessariamente é o sentido da nossa existência, ele pode ser um dos pilares dela. O importante, quando a gente trabalha a questão do propósito, é olhar com profundidade o principal protagonista da organização: as pessoas”, considera.
“Meu propósito é gerar uma aprendizagem transformadora em pessoas ou organizações de forma que atenda às expectativas próprias daquele público”
– Tatiana Costa, consultora organizacional, palestrante e mentora de carreira
A gestão das empresas passa por uma transformação. Historicamente alicerçada em escolas e ferramentas administrativas que surgiram para atender outras épocas industriais, agora impulsionada pelas tecnologias e novas dinâmicas sociais, a gestão abre espaço a modelos administrativos mais ágeis e ferramentas inovadoras, valorizando as competências humanas comportamentais. “Nessa transição, saímos daquela cultura alicerçada na missão, visão e valores à necessidade de criar o propósito organizacional, porque missão é cumprida, não necessariamente sentida. Já o propósito é um guia que engaja a colaboração das pessoas na empresa”, comenta Tatiana.
No cenário contemporâneo, investir em autoconhecimento é necessário e estratégico. “Um colaborador consciente sobre seu propósito de vida se conecta ao propósito da organização com mais facilidade e mais feliz se torna a jornada”.
GERAÇÃO PROPÓSITO
As gerações Z (faixa etária entre 18 a 24 anos) e millennials (25 a 40 anos), que representam mais de 30% da população brasileira, já são focadas em propósito. Pesquisa como a da Accenture, com mais de 25 mil jovens consumidores em 22 países, revela que metade dos entrevistados afirma já ter mudado comportamentos e valores de consumo. Eles estão mudando hábitos de compra seguindo um estilo de vida que valoriza propósito e responsabilidades socioambientais e estão de olho na coerência com que estes pontos são transmitidos pelas marcas.
Estamos diante de um cenário de oportunidades às empresas de se diferenciarem promovendo seu propósito organizacional e suas ações ambientais, sociais e de governança (ASG), por exemplo, criando relações autênticas com seus públicos. Uma das formas que as organizações podem mostrar autenticidade é por meio da inovação orientada por propósito, ou seja, cada novo produto ou serviço deve emergir do propósito.
A DIFERENCIAÇÃO POR PROPÓSITO PRECISA:
ENVOLVER PESSOAS – clientes, funcionários, parceiros etc
AUTENTICIDADE – praticar o que se declara
COMUNICAR – gera confluência de valores entre a empresa e seus públicos para relacionamentos duradouros
PARCEIROS CONVERGENTES – criação de um ecossistema com objetivos e valores próximos
A ESSÊNCIA QUE TORNA CADA COOPERATIVA ÚNICA
As cooperativas são instrumentos de desenvolvimento sustentável local, na visão do consultor cooperativo Silvio Giusti. E que têm no propósito sua essência norteadora. Elas atuam no desenvolvimento local ao criar soluções capazes de gerar benefícios para os cooperados e também necessariamente alcançar a comunidade. “Eu me atenho a um conceito italiano de intergeracionalidade, que defende que a cooperativa não pertence ao quadro social, ela é um patrimônio que pertenceu às gerações passadas, pertence a esta e vai pertencer à geração futura. Nesse sentido, o propósito está tão claro que faz a comunidade enxergá-la como algo que passa de geração em geração impactando as pessoas”.
O consultor sugere às cooperativas se lembrarem de quatro “pês”, que são a chave para manter clara a identidade organizacional e a conexão com as pessoas em torno do propósito.
“Temos consciência de que existem dezenas de cooperativas que até hoje não acharam sua identidade, atuam como, mas não são cooperativas. Às vezes, até os próprios dirigentes cooperados estão distantes da essência cooperativista dos porquês, e focando apenas o o quê”. Nesse caso, entende Giusti, ou elas despertam para a importância do propósito que sustente sua identidade, ou tendem a ser eliminadas pelo próprio mercado. “A gente fala muito em governança, propósito, mas que essas palavras sejam de fato vivenciadas, para que o discurso seja condizente com a realidade, senão perde credibilidade, e quando o negócio perde credibilidade ele deixa de existir”, alerta.
OS 4 PÊS ESSENCIAIS ÁS COOPS:
PARTICIPAÇÃO ECONÔMICA E DEMOCRÁTICA – garantir que as pessoas participem dos processos
PROMOÇÃO DO CONHECIMENTO – traz empoderamento ás pessoas
PROTAGONISMO COLETIVO ORGANIZADO – soma de aspirações, necessidades e esforços
PROSPERIDADE SUSTENTÁVEL LOCAL – não há uma sociedade feliz alimentando desigualdades
A GESTÃO COOPERATIVA PROFISSIONAL PONDERA INTERESSES COMPETITIVOS DE MERCADO AO PROPÓSITO ORGANIZACIONAL
“O propósito principal da organização cooperativa, no meu entendimento, seria responder às demandas, necessidades, desejos de seus cooperados”, pontua Pablo Albino, doutor em Sistemas Flexíveis de Gestão e professor do curso de Cooperativismo da Universidade Federal de Viçosa.
Albino defende que, ainda que carregue toda uma bagagem histórica, definições e princípios seculares, as cooperativas precisam não só de propósito, mas também de estratégias modernas e ágeis para se adaptar eficientemente ao mercado. “Fazendo isso elas não estão deixando de lado os propósitos cooperativistas. Ser mais flexível, mais voltada para o ambiente de negócio é uma questão de entregar valor para o seu quadro de cooperados e de se sobressair em um mercado extremamente competitivo”.
Uma gestão pautada em práticas chamadas profissionalizadas é salutar às cooperativas, na visão de Albino. Executivos contratados para os cargos administrativos podem minimizar gargalos apontados por Michael Cook, professor americano, que ainda em 1995, apontou como dificuldade das cooperativas estabelecer visão de longo prazo, ou por vezes demora nas decisões, que tem de passar por processos específicos, comenta Albino.
“Hoje a gente fala em governança, conselho de administração, diretoria executiva mais ágil, métodos e processo mais flexíveis e rápidos, porém sem perder de vista que o objetivo é suprir as necessidades e demandas do cooperado. Não adianta a cooperativa falar que gera milhões em sobras se ela está esmagando o cooperado, que é sua razão de existir, seu propósito”, diz.
Albino avalia ainda que o desafio das cooperativas é a participação do cooperado, não a definição do propósito ou adoção de uma gestão profissionalizada. “A cooperativa nasce, cresce, consegue suprir uma série de demandas financeiras dos cooperados, e percebe que existe uma oportunidade no mercado e resolve aumentar sua capitalização para investir, quando ela faz isso, muitos dos cooperados, que deveriam se sentir atendidos, abandonam a cooperativa”, relata. Ele entende que a prática da segmentação de cooperados pode ser uma estratégia útil, eficiente e trazer bons resultados.
O PROPÓSITO LEVA A FAZER A DIFERENÇA
Tanto a Sicoob Sarom quanto a Viacredi Alto Vale são exemplos de gestão cooperativa por propósito, mas tiveram de ser despertadas ou lembradas disso, a partir do exercício, como ensinou Tatiana Costa, de olhar para dentro e para a comunidade ao redor, descobrir sua vocação e definir concretamente um propósito.
Uma cidade de cerca de seis mil habitantes, no interior de Minas Gerais, vivia o desafio, no início dos anos 1990, de encontrar um meio de promover prosperidade. É aí que começa a história a cooperativa de crédito Sicoob Sarom, em São Roque de Minas.
João Carlos Leite, presidente do Conselho de Administração do Sicoob Sarom, recorda que, sem agência bancária no município, a economia local deteriorava, juntamente com o ânimo da população. “A cidade entrou em depressão, o povo queria ir embora, e criamos a cooperativa, inicialmente prestando serviços bancários básicos e, com o tempo, foi renascendo a esperança na sociedade”.
Seguindo a economia agrícola do município, a cooperativa iniciou apoiando produção de milho, café e a pecuária leiteira. E o motor econômico local voltou a girar. Um exemplo da evolução concreta, dos aproximadamente 300 mil pés de café nos anos 1990, hoje os cooperados dispõem de mais de 30 milhões, gerando emprego e renda. “Transformamos a realidade da comunidade usando conhecimento e crédito. Quando fomos fazer o trabalho de resgate da cultura Sarom, olhamos para dentro e descobrimos que naturalmente nosso propósito é inspirar pessoas para transformar realidades”, conta Leite.
Em São Roque de Minas, praticamente todos os moradores são associados da cooperativa. “Hoje, São Roque registra 8,84% de crescimento real. Deixamos de ser um município pobre para ser próspero”, comemora o presidente. O modelo foi replicado em cidades vizinhas, ampliando o propósito. “Descobrimos que podemos agregar valor à cadeia produtiva que já temos e criar novas, como a charcutaria”, menciona. A cooperativa fomenta a ampliação dos produtos que levam a marca da região e promovem importante retorno financeiro.
“Desenvolvemos um modelo de atuação que gera prosperidade. Esse modelo tem por base a gestão do conhecimento, poupança e crédito, aliada ao senso de coletividade na comunidade”
– João Carlos Leite, presidente do Conselho de Administração do Sicoob Sarom
Da Serra da Canastra ao Vale do Itajaí. Até 2016, a Viacredi Alto Vale seguiu um modelo de gestão tradicional. A partir das atividades de um programa de desenvolvimento organizacional de processos, a cooperativa foi instigada a avaliar o motivo de suas ações.
Duas questões foram basilares no processo de revelação do propósito organizacional: por que a cooperativa existe? e, se ela não existisse, que falta faria à região? As palavras-chave contidas nas respostas compuseram o propósito: fazer a diferença na vida das pessoas. “Ficamos um meio-dia discutindo frases, para nós era muito mais do que uma frase, era o porquê fazemos o que fazemos”, relembra Ricardo da Silva, diretor executivo da Viacredi Alto Vale.
A dinâmica, em várias etapas, conseguiu incluir todas as equipes da cooperativa e promoveu uma mudança de postura em relação a pessoas, passando a focar ainda mais na satisfação dos públicos, em relacionamento e promoção de objetivos de ganho coletivo. “Fomos melhorando também nosso clima organizacional. Pessoas felizes fazem pessoas felizes. É uma evidência de que a gestão por propósito melhora a qualidade do clima organizacional, e tem conexão com valores pessoais “, analisa Silva.
Construída com a participação dos funcionários, a ferramenta de planejamento estratégico ganhou traços lúdicos e simbólicos para marcar toda a trajetória evolutiva da cooperativa e aonde pretende chegar
“A gente trabalhou com a liderança e com as equipes o olhar para o seu propósito de vida e a conexão com propósito e os valores da cooperativa. Foi uma virada de chave”, aponta Andressa Sachetti Kestring, analista de Gestão de Pessoas da Viacredi Alto Vale.
A inovação na cooperativa, assim como as demais ações e escolhas, hoje consideram primeiramente a adequação ao propósito. “O propósito nos leva pensar o que eu posso fazer diferente, como a gente pode fazer para realizar o propósito”, diz Andressa.
A participação dessas cooperativas no Reconhecimento Inovação com Propósito, promovido pelo Instituto Fenasbac, revelou a metodologia que lhes faltava, capaz de auxiliar a mensuração do impacto das ações de inovação sob a ótica do propósito.
“A jornada de gestão por propósito é transformadora. Transformou nosso jeito de lidar, de perceber as coisas e a forma de comunicar”
– Ricardo da Silva, diretor executivo da Viacredi Alto Vale
É PRECISO RECONHECER A GESTÃO POR PROPÓSITO
O filósofo e escritor Mário Sérgio Cortella comenta no livro “Por que fazemos o que fazemos?” que “a palavra ‘propósito’, em latim, carrega o significado de ‘aquilo que eu coloco adiante’. O que estou buscando.” Reconhecer e replicar a prática do propósito em primeiro plano é a ideia central da iniciativa promovida pelo Instituto Fenasbac, que desenvolveu uma metodologia para auxiliar as cooperativas financeiras à gestão da inovação a partir do propósito organizacional. “É obrigação de qualquer negócio inovar, mas o diferencial do cooperativismo é inovar com propósito”, defende Wankes Leandro, diretor técnico do Reconhecimento Inovação com Propósito (RECIP).
O levantamento realizado junto às cooperativas participantes indica que é possível e desejável um maior investimento em ações por propósito. Em uma intervalo de um a cinco, a média da inovação cooperativa que segue um propósito claro alcançou 3,8 pontos. Ou seja, é desejável buscar inspiração nas boas práticas e ainda evoluir em propósito.
Para Wankes Leandro, é um erro o cooperativismo de crédito tentar replicar as ações dos bancos. “Pode-se dizer que em torno de 40% das cooperativas estão se afastando de serem cooperativas e mais próximas de serem bancos. Esse é o dado mais chocante que essa avaliação mostrou”.
Das cinco dimensões que compõem o modelo proposto de gestão da inovação voltada ao propósito: inovação participativa (governança e gestão democrática); inovação colaborativa (parcerias e intercooperação); comportamento inovador (papel das lideranças no estímulo das equipes à proposição de soluções); desenvolvimento de capacidades, estrutura e recursos (desenvolvimento profissional e disposição de meios e mecanismos à inovação); e inovação com propósito (impacto social e ambiental na comunidade), segundo Wankes Leandro, exceto pelos critérios voltados à governança, que se referem basicamente a atender as legislações do setor, e à participação democrática, que alcançaram estágio avançado das ações, os demais se mantiveram no nível intermediário, e precisam ser melhor trabalhados pelas cooperativas.
AÇÕES COM PROPÓSITO SÃO ENTENDIDAS COMO CAPAZES DE AMPLIAR O IMPACTO POSITIVO NA SOCIEDADE, NO MEIO AMBIENTE E MANTER BOAS PRÁTICAS DE GOVERNANÇA
O diretor critica que, por exemplo, a intercooperação não acontece de forma ampla e concreta, e que há falta de vinculação efetiva entre as ações e os propósitos cooperativista e das organizações. Mas também comemora as instituições (11%) que demonstraram atuar inovando alinhadas ao propósito. “É um desafio contínuo”, pontua. Os dados, garante, são qualificados e representativos de todo o cooperativismo de crédito brasileiro. Cerca de 10% das cooperativas financeiras participaram deste processo de análise.
Por Nara Chiquetti – Matéria publicada originalmente na edição 106 da Revista MundoCoop
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