O Pará foi palco, entre os dias 19 e 21 de agosto, de um encontro que ressoará para as principais tomadas de decisões da atualidade. O Workshop Internacional sobre o Papel das Cooperativas da Agricultura Familiar no Contexto da COP 30 reuniu mais de 200 lideranças entre dirigentes de cooperativas, representantes de 15 ministérios do governo federal, parlamentares, especialistas e sociedade civil no Espaço São José Liberto, em Belém.
Organizado pela União Nacional das Cooperativas da Agricultura Familiar e Economia Solidária (Unicafes Brasil), em parceria com o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA) e a Organização das Nações Unidas (ONU/DESA), o evento antecipou discussões estratégicas para a maior conferência climática do planeta, que acontece em novembro na capital paraense.

Na ocasião, o workshop destacou uma contradição que desafia o futuro dos sistemas alimentares globais. Embora 90% das propriedades agrícolas do mundo sejam familiares e responsáveis por mais de 80% da produção de alimentos, esses agricultores recebem menos de 1% dos recursos destinados ao financiamento climático. A disparidade, já reconhecida na COP 29, voltou à tona em Belém, onde se reforçou a mensagem de que não há justiça climática sem justiça rural, um alerta que ganha ainda mais força em 2025, ano em que se celebra o Ano Internacional das Cooperativas.
As discussões percorreram temas que atravessam os grandes desafios do século 21 como segurança alimentar, transição energética e biocombustíveis, bioeconomia e sociobiodiversidade. Também estiveram em pauta questões estruturais, como o acesso a financiamento climático e mercados sustentáveis, além da inclusão produtiva de mulheres, jovens e povos tradicionais. Em todos os debates, emergiu um consenso, as cooperativas precisam ser vistas como protagonistas da construção de uma economia de baixo carbono e socialmente justa.
Compromisso e atuação
A abertura oficial do evento contou com importantes nomes que representam a pauta da agricultura em diferentes setores da sociedade. Entre eles, Fátima Torres, presidente da Confederação Unicafes Brasil, conscientizou a todos sobre a urgência de não apenas inserir as cooperativas nesse contexto, mas também sua relevância na sustentabilidade brasileira. Para ela, o workshop marca “um passo histórico para que a voz dos agricultores e agricultoras familiares seja ouvida nas negociações globais sobre o clima”.
Ernandes Raiol, Presidente do Sistema OCB Pará, colocou o Pará no centro dessa questão, destacando os desafios que o estado enfrenta a respeito de turismo, agricultura, economia e desenvolvimento. “Hoje, temos mais de 30 cooperativas ligadas diretamente a OCB e ao Sescoop. Com isso, percebemos que é preciso discutir tecnologias, mas é ainda mais necessário discutir sobre as pessoas, os recursos e os incentivos para elas.”
Ainda, a Deputada Federal Duda Salabert, Presidente da Subcomissão de COP 30 da Câmara dos Deputados, enfatizou que trazer esses tópicos para a COP 30 podem não ser a solução imediata, mas, com certeza, são o caminho para a mudança. “Defender essa COP é defender a agroecologia.”
“Nosso agricultor familiar é um reflorestador nato” – Ernandes Raiol, Presidente do Sistema OCB Pará

Acessos e oportunidades
A relevância da agricultura para o desenvolvimento socioeconômico do país é indiscutível, mas o que realmente garante que o trabalho de milhares de agricultores familiares e pequenos produtores seja valorizado de forma justa? Em um mercado cada vez mais competitivo, não basta apenas produzir com qualidade, é preciso ter condições de levar os produtos ao consumidor de maneira equilibrada e sustentável.

É nesse contexto que o acesso a mercados se torna essencial, abrindo caminhos que asseguram reconhecimento, inclusão e melhores oportunidades para quem está na base da produção.
Fátima Torres explica que levantar essa questão é a base da atuação da Unicafes, pois é o acesso ao mercado com justiça social e boa remuneração que trará a prosperidade para as cooperativas e, consequentemente, para a sociedade. Dando, assim, visibilidade para mulheres, homens e jovens que ainda estão no campo. “Se não tivermos políticas que fortaleçam os processos de inserção em comércios mais justos e solidários veremos, cada vez mais, nossa juventude saindo do meio rural.”
Além do acesso a mercados, a equidade de gênero também desempenha um papel central na construção de uma economia solidária. Para Simone Schaffer, Coordenadora-Geral de Promoção da Igualdade Econômica das Mulheres, falar de cooperativas de agricultura familiar é falar de cooperativas majoritariamente ocupadas por mulheres, não necessariamente na liderança, mas em todos os processos produtivos. Investir em uma economia mais justa e solidária passa, portanto, por considerar esse recorte de gênero.
“A cooperação é cada vez mais importante, só com a humanização que algo será mudado”
Daniel Balaban, Diretor do Centro de Excelência do Programa Mundial de Alimentos da ONU
Não é possível destacar acesso a mercados sem considerar o acesso a crédito. Nesse sentido, Caio Cavalcanti, Assessor do BNDES, explica que a instituição tem buscado se aproximar das cooperativas, com o objetivo de levar recursos para regiões Norte e Nordeste. O grande desafio, no entanto, é outro. “O recurso existe, as taxas são atrativas, mas precisamos fazer com que chegue a quem realmente precisa”, observa.
Os recursos do BNDES são operacionalizados por meio de agentes financeiros e exigem documentação e garantias que, muitas vezes, se tornam barreiras para pequenos produtores. É nesse ponto que as cooperativas desempenham um papel crucial, atuando como ponte entre os produtores e os recursos disponíveis, que não são oferecidos a pessoas físicas.

Seguindo o tema, Fernando Moretti, Líder de Crédito Socioambiental do Instituto Conexsus, trouxe um grande alerta aos participantes. Ao apresentar dados recentes do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), ele questiona: “Vocês sabem quantas operações de Pronaf para as cooperativas foram feitas na região Norte no ano passado? Apenas seis. Estamos falando de um Plano Safra, que é uma política pública fantástica, mas que não chega onde deve chegar. Essa é a realidade do Brasil”.
Comunidades tradicionais, populações indígenas e comunidades ribeirinhas e quilombolas, por exemplo, não acessam essa política pública de financiamento. Mas o desafio não para por aí. Para o produtor essa questão se torna ainda pior em um cenário onde 99% nunca acessou o Pronaf, 40% não possui o CAF (Cadastro Nacional da Agricultura Familiar) e mais de 80% não possui o CAR (Cadastro Ambiental Rural), requisitos indispensáveis para acessar os recursos. “Os bancos não estão preparados para lidar com a biodiversidade da agricultura familiar e regional”, acrescenta Moretti.
Reforçando essa discussão, Marina Corso, Coordenadora de Crédito da CRESOL, acrescenta que o índice de informalidade, a alta demanda de microcrédito e a taxa de inadimplência vista na região são oportunidades para a atuação diferenciada das cooperativas de crédito. “É preciso as culturas da região, investir na formação técnica, empreendedorismo e regulamentação fundiária”, relata.
Energia que vem da terra
O Brasil tem uma tradição de décadas na produção de biocombustíveis, especialmente derivados da cana-de-açúcar, soja e milho, com agendas de pesquisa consolidadas ao longo do tempo. Em 2025, novas fontes de energia renovável estão ganhando espaço, e surge um desafio estratégico: como incluir a biodiversidade do país, especialmente nas regiões Norte e Nordeste, nesse cenário de transição energética?
Com a agricultura familiar, a transição energética representa uma oportunidade de diversificação da produção, reduzindo a dependência das monoculturas e commodities tradicionais, ao mesmo tempo em que promove o desenvolvimento regional e a descentralização da indústria.
Rogério Antônio Mauro, Coordenador-Geral de Cooperativismo e Associativismo do MDA, explica que três fatores se destacam como fundamentais para reforçar o papel da agricultura familiar nesse contexto: políticas públicas eficazes, conhecimento técnico e científico, e organização de base. “Não adianta ter política pública sem conhecimento das particularidades das regiões.“
O impacto das cooperativas na transição energética pode ser observado em múltiplas dimensões. No aspecto econômico, elas facilitam o acesso a mercados e compradores; no social, fortalecem a gestão coletiva e a inclusão; na governança, promovem participação nas tomadas de decisão; no ambiental, estimulam práticas agroecológicas; e no territorial, contribuem para o desenvolvimento local e para o aproveitamento de energias locais.

“Regular o mercado é essencial para um estado forte”- Sandra Bergamin, Presidente da UNICAFES Santa Catarina e Secretária de Mulheres da UNICAFES Nacional
Entretanto, desafios persistem. Infraestrutura e logística limitadas, acesso restrito a tecnologia, concorrência com grandes produtores e a necessidade de conscientização entre eles. Superar esses obstáculos exige articulação, planejamento e investimento, garantindo que as cooperativas da agricultura familiar se mantenham no centro da transição energética.
“As cooperativas são o instrumento que proporcionam o acesso a mercado e formação técnica, estabilidade de renda, planejamento coletivo e aumento da produtividade”
Rogério Antônio Mauro, Coordenador-Geral de Cooperativismo e Associativismo do MDA
Nesse sentido, Sandra Bergamin, Presidente da UNICAFES Santa Catarina e Secretária de Mulheres da UNICAFES Nacional, evidencia que “um grande desafio é a legislação brasileira, que trata o cooperativismo unilateral e não diverso”, tornando mais que necessário o combate a desvalorização da diversidade produtiva. “A cooperativa precisa ser vista como um processo de inclusão social e organização popular e não com desconfiança da parte dos agentes bancários”, reitera.
É preciso comunicar
Se o acesso a mercados e a participação na transição energética fortalecem a agricultura familiar, a mobilização social e a comunicação são ferramentas que ampliam esse impacto, dando visibilidade ao papel das cooperativas como protagonistas do desenvolvimento sustentável no Brasil.
Ederson Granetto, jornalista e apresentador do Canal AgroMais, destaca que a agricultura familiar já possui um espaço garantido na mídia, tanto segmentada quanto geral, mas o desafio está em colocar o cooperativismo solidário nesse mesmo patamar. Para ele, isso só será possível com investimento em comunicação e campanhas de marketing, mesmo que simples, que expliquem de forma clara o que são as cooperativas. “O cooperativismo solidário precisa estreitar a relação com as mídias para passar exatamente o que é a atuação. A chave é mostrar exemplos, mostrar a realidade”, ressalta.
Segundo Granetto, levantar fundos para popularizar o cooperativismo é um passo essencial, pois contribui tanto para a compreensão do grande público quanto para atrair novos cooperados. Para alcançar resultados efetivos, ele sugere uma aproximação direta com jornalistas e comunicadores, por meio de encontros que expliquem o papel das cooperativas, além da apresentação de exemplos concretos, já que a mídia trabalha, sobretudo, com personagens que personificam histórias reais.
Essa percepção é reforçada por Douglas Alves Ferreira, Diretor de Comunicação da MundoCoop. Para ele, não basta que as cooperativas atuem de forma eficiente se não houver uma divulgação consistente: “Não adianta fazer um trabalho excepcional se não traçarmos uma estratégia de comunicação”, afirma. Ele destaca que um dos maiores desafios ainda é o desconhecimento da sociedade sobre o impacto real do movimento.
Douglas ressalta, ainda, que a comunicação deve começar de dentro para fora. Apesar da eficácia da comunicação interna, muitos cooperados ainda não compreendem totalmente o que é uma cooperativa, o que torna essencial disseminar o engajamento de forma natural e contínua. Para isso, ferramentas já disponíveis podem ser melhor aproveitadas. “Precisamos falar para todos os públicos em todos os canais”, reforça. Ele também aponta para a importância da nova geração que está entrando no mercado e que pode se conectar com o cooperativismo de forma inovadora, trazendo um olhar diferenciado e ampliando o alcance das iniciativas.
A mesma visão é compartilhada em nível internacional por Anca Volnea, Diretora do Portal Coop News, da Inglaterra. Segundo ela, a comunicação estratégica ainda não é tratada como prioridade por muitas cooperativas, o que dificulta o fortalecimento do movimento em escala global. “O Ano Internacional das Cooperativas é uma grande oportunidade de engajarmos com diferentes setores”, afirma. Para Anca, a missão dos veículos especializados é conectar cooperativas e torná-las visíveis, mas é fundamental que o próprio movimento enxergue a comunicação como um investimento central.
Ela observa que as narrativas individuais são especialmente eficazes, pois humanizam o cooperativismo e aproximam o público. “As histórias das pessoas vão muito bem, e os membros podem ser o maior ativo quando se trata de comunicação. Nos procurem e nos ajudem a contar essas histórias”, conclui.
“Temos um grande desafio, a sociedade não conhece o que o cooperativismo entrega” – Douglas Ferreira, Diretor da MundoCoop

O real propósito
Concluindo a temática, Sandra Bonetti, Assessora da CONTAG, deixa a mensagem de que é preciso “Amazonizar” o país e, principalmente, as políticas públicas brasileiras. Ou seja, conhecer de fato os territórios para fazer uma política de qualidade e entender o que cabe ou não nas regiões antes de pensar em grandes transformações.
A COP não pode ser vista como um evento isolado, mas sim como parte de um processo contínuo de construção e renovação de acordos globais. A edição de 2025, realizada no Brasil, terá um peso ainda maior: dela sairão as diretrizes que vão orientar as políticas climáticas da próxima década. Se as decisões que serão tomadas para os próximos dez anos não considerarem a importância da agricultura familiar, qual será o futuro de milhões de famílias que hoje sustentam a produção de alimentos no país?
O Fórum Econômico Mundial já apontou que o grande desafio dos próximos anos será combater a desinformação. E, justamente por isso, dar visibilidade às práticas, produtos e histórias da agricultura familiar é uma forma de mostrar ao mundo o quanto o cooperativismo pode ser estratégico para enfrentar a crise climática.
Como destaca Aparecido Souza, presidente da Unicafes, o objetivo é claro: “Nós queremos na COP30 mostrar a cara da agricultura familiar através dos seus produtos”. A escolha da Amazônia como sede da COP 30 deu luz para a urgência de colocar territórios, povos tradicionais e cooperativas no centro da transição ecológica. Ao unir preservação ambiental, geração de renda e produção de alimentos saudáveis, a agricultura familiar mostra que é possível alinhar desenvolvimento e sustentabilidade, e que a resposta ao futuro climático global passa necessariamente por ela.
Por Fernanda Ricardi – Redação MundoCoop

Reportagem exclusiva publicada na edição 125 da Revista MundoCoop