Esse questionamento, título de um dos livros do filósofo, escritor, educador, palestrante e professor universitário, Mário Sergio Cortella, traz consigo uma das maiores reflexões da atualidade – e talvez de todos os tempos.
Se o propósito, resposta intrínseca dessa pergunta, acompanha a humanidade há anos, sua necessidade hoje é pauta constante. Na era atual, seja ela como queira denominar, é preciso se comunicar, se posicionar, se conectar, mas também recuar, pensar e até desaprender para continuar.
Para nos guiar a cada novo norte que surge, conversamos com Cortella em um bate-papo exclusivo sobre resgate do passado, atenção ao presente e visão de futuro!
Confira!
COOPERAÇÃO E COMPETIÇÃO
Muitos falam que estamos entrando numa era onde a competição vai dar lugar à cooperação. Estamos prontos para isso?
Ainda não estamos, mas estaremos! Afinal de contas, são séculos e séculos em que a ideia de competição excludente, não a competição divertida e como forma de animação da nossa convivência, foi colocada dentro do nosso cotidiano. Por isso, a questão é: começamos nós já os passos para que a cooperação tenha uma hegemonia maior? Sem dúvida.
Não estamos ainda num caminho mais sólido, mas temos sim já grandes sinais de que as pessoas em largo tempo perceberam o quanto que a cooperação é a forma mais estruturada e, ao mesmo tempo, mais eficiente para que haja uma perenidade maior naquilo que se faz, de modo a dar as comunidades muito mais condições de existência e de fazer com que os negócios, a par da sua competitividade, das suas possibilidades mais fortes de lucratividade, rentabilidade, produtividade e sustentabilidade, tenham também aí essa perenidade que permite que a gente traga a noção de cooperação como sendo aquela decisiva.
MUDANÇA DE MINDSET
A inteligência cooperativa é uma nova skill no mundo dos negócios e uma nova demanda dos líderes e colaboradores?
Sim, mas exigirá algumas alterações de percepção. A ideia de competência, de habilidade, de ação se dá muito mais nas conexões de interface com as outras competências ali existentes do que no mundo unidirecionado.
Nesta hora, claro, as lideranças, aquelas que têm inteligência estratégica ou aquelas que desejarem ter uma inteligência estratégica que tenha maior nível de eficácia, têm de acolher a noção de cooperação como sendo uma das habilidades centrais e que não o coloque um desgaste interno que pode levar a um colapso, inclusive das energias vitais que a própria organização se coloca.
Nesse sentido, sim, a cooperação aparece como sendo não só uma atitude, mas como uma habilidade a ser formada. E ela não se dará apenas pelo incentivo ou apenas pelo estímulo. Sem dúvida, isso favorece uma emoção de compreensão daquilo que é necessário, mas não basta. Mais do que apenas um incentivo, é a organização de atividades que exijam a cooperação como sendo o seu movimento mais dedicado. Porque quando há a criação de circunstâncias, de projetos e processos em que a cooperação tenha a sua presença mais efetiva, é claro que aí há uma demonstração do valor da cooperação e não apenas uma, a marca de reflexão sobre cooperação, mas, isso sim, a sua prática.
O PÓS PANDEMIA
Com tantos acontecimentos e mudanças, as pessoas estão buscando cada vez mais o equilíbrio entre a vida pessoal, social e profissional. Essa é uma tendência para os próximos anos. Isso chegou para ficar?
Ainda bem que essa preocupação vem à tona, afinal, nós temos uma única vida e essa vida tem várias facetas. Eu não tenho uma vida pessoal, uma vida profissional, uma vida política, uma vida religiosa. Eu tenho uma única vida.
O que é necessário, cada vez mais, é que haja uma harmonia entre aquilo que é o lado profissional da minha vida, com o lado afetivo da minha vida, com o lado da cidadania, da amizade, da preparação. E uma das coisas que favorece essa possibilidade de harmonia é colocar-se a questão: o que é que precisa ser melhor partilhado para que me sobre tempo? Para que eu faça outras das coisas que tenho de fazer?
Uma das grandes forças internas da cooperação é que, quando há uma atitude cooperativa e colaborativa, há uma possibilidade de que a distribuição da tarefa e, ao mesmo tempo, da inteligência necessária, se dê de modo mais proporcional e haja aí uma certa forma de poupar tempo de algumas pessoas que eventualmente ficariam mais sobrecarregadas e fazer com que essa nova forma de liberação de tempo ofereça condição de um equilíbrio maior com as outras dimensões que a vida coloca, que não apenas a da profissão, da atividade de negócio. Por isso, sem dúvida, essa se coloca hoje como sendo uma preocupação forte.
A ideia de que nós não devemos apenas mergulhar em algo que seja obsessivo, não sermos marcados pela “laborlatria”, que é a adoração do mundo do trabalho, sem deixar de entender o lugar que carrega, mas também tendo nitidez da importância de uma composição harmônica dos vários modos nos quais nós nos colocamos.
“O equilíbrio na vida não é o equilíbrio da estática, é o equilíbrio em movimento, mais ou menos como o equilíbrio de uma bicicleta, você desaba quando você para”
PROPÓSITO EM FOCO
Se questionar é a base da vida em sociedade hoje em dia?
Millôr Fernandes dizia: “Se você não tem dúvidas, é porque está mal informada”. Afinal, uma das coisas da inteligência humana é a possibilidade de colocar sob suspeita aquilo que parece óbvio e evidente, exclusivo e definitivo. Só existe inovação na ciência, na arte, na filosofia, na religião, porque há lugar para a dúvida.
A dúvida não é aquela que impede a ação, é aquela que ajuda a preparar a ação. Por isso, é preciso nos perguntar: será que esse é o único caminho? Será que não há uma outra maneira de fazer? Será que eu estou seguindo de modo automático ou robótico? O que faço? O que é que me impulsiona para fazer aquilo que realizo? Daí que essa forma hoje mais meditativa sobre as razões e não apenas sobre as ações, ela tem uma forma também marcante de nos impedir da alienação dentro do que fazemos.
E a dúvida ela não serve para ser permanente. Ela serve para ser preparatória e alcançar qual é a razão daquilo que faço. Se eu tenho nitidez em relação a isso, não tenho dúvida se poderá fazer melhor o que a gente aprecia, necessita e gosta também de fazer.
O LÍDER HOJE
A posição de um líder sempre foi algo muito importante para a humanidade e para as organizações, inclusive para o próprio cooperativismo. Por que parece que essa figura está tão escassa atualmente?
Nós multiplicamos tanto o número de pessoas, de relações, de negócios, de percepções e houve uma ampliação tão grande das circunstâncias que a gente não tem mais a possibilidade de concentrar a ideia de liderança em uma ou outra pessoa específica.
Nesse sentido, aquilo que antes se entendia como líder de uma comunidade, o líder de um grupo, o líder de um negócio, era muito mais marcada por um direcionamento personificado.
Hoje, a ideia de liderança se coloca muito mais como sendo uma partilha de ações, condutas e possibilidades. Uma empresa, uma organização, uma cooperativa sabe que a liderança não é algo que se confunda estritamente com chefia, com comando, com hierarquia.
“Liderança é uma atitude que pode coincidir em alguém que está numa atividade de chefia”
Há muitas pessoas que são líderes e não são chefes. E há muitas pessoas que são chefes e não tem uma atividade de liderança concentrando isso.
No nosso tempo atual, essa complexidade muito mais expandida faz com que a gente tenha de partilhar melhor a noção de liderança como sendo aquela que se dá em função das competências e, não necessariamente, da hierarquia.
A VEZ DA COMUNICAÇÃO
Como combater o desconhecimento? Qual é o segredo para se comunicar melhor hoje em dia?
Acho que há dois passos muito fortes nessa direção. O primeiro, sem dúvida, é uma difusão qualificada. Hoje, nós temos vários modos de amplificação das informações, do acesso àquilo que é o que se deseja divulgar. Utilização de novas tecnologias e novas plataformas. Portanto, aparatos que não se restringem ao que se tinha em outros tempos. Evidentemente que toda essa nova tecnologia não é divergente, afastadora, ela é convergente.
Eu sou comentarista de rádio e o rádio é algo do século XIX, mas ele continua presente no nosso cotidiano. O que muda, talvez, é a plataforma onde ele é ouvido e qual é o modo da presença. Isso significa que, sem dúvida, o primeiro passo é a possibilidade de, utilizando aquilo que hoje são os novos modos de presença da comunicação e fazê-lo chegar especialmente às gerações que têm mais habilidade dentro da circunstância digital.
O segundo é a comprovação. Isto é, as pessoas se conectam com coisas que são exemplarmente concretas. Em outras palavras, não basta eu dizer que o cooperativismo é algo importante. É preciso que isso seja demonstrado. E o demonstrar se dá exatamente com a indicação das situações que são exemplares, ou seja, a organização, a empresa, as vantagens e tudo aquilo que pode ser demonstrado e não apenas sugerido como sendo algo a pensar. Exemplarmente indicar que aquilo não é mero desejo, é uma prática.
O PODER DA ESCOLHA
Saber desaprender para reaprender se tornou essencial?
À medida em que nós vamos tendo experiências, vivenciando situações e tendo acesso a informações, é necessário capacidade de seletividade. Nesse sentido, cada vez mais esse tsunami informacional que nós temos do cotidiano, tem que aperfeiçoar em nós a necessidade dos nossos critérios serem mais seletivos. Do contrário, haveria uma inundação completamente afogante do que temos de saber.
E só é possível ter critério se eu tiver nitidez também de quais são os meus objetivos e quais são os meus propósitos. Afinal, quando algo se escolhe, se desescolhe outras coisas, quando algo se elege, se deselege outras situações. E quando eu algo escolho, eu preciso saber por que estou fazendo, porque é isso e não aquilo.
No campo do conhecimento a gente vai guardando o que nos importa, mas no campo da informação a gente lida, assim, com a necessidade de deixar para trás, de esquecer.
“Uma das coisas importantes nos novos aprendizados, os nossos desaprendizados”
Aquilo que eu aprendi a fazer no modo como fiz em outro momento e que agora não tem a mesma aplicabilidade, acaba ficando fora do tempo, ficando anacrônico. Esquecer-se de algo que era habitual é decisivo, mas não é algo tão automático.
APRENDIZADO CONTÍNUO
O futuro está na educação? Como saber se a gente está no caminho certo?
O futuro sempre esteve na educação, entendida como a formação de novas gerações. Afinal, nós não nascemos prontos, nós somos um ser que precisa ser formado. Ainda bem. Uma das nossas maiores vantagens como espécie é que nós não nascemos sabendo.
Isso nos oferece a possibilidade de aprender aquilo que, na modificação da vida, sendo novo e inédito, tem que ser aprendido.
A vida é processo, processo é mudança e o conhecimento se dá na nossa formação por intermédio da educação, no sentido mais amplo, e da escolarização, como sendo o nosso modo de educação propositada, deliberada e estruturada.
Sem dúvida, uma formação que ofereça ferramentas de base científica para que a gente consiga alterar e mexer na realidade. Por outro lado, formação de convivência e solidariedade e, é claro, junto com isso, valores dessa nossa mesma convivência que permitam que a nossa conduta seja decente.
DE OLHO NO AGORA
O que o senhor diria para as nossas cooperativas, os nossos gestores, as pessoas que estão à frente disso e os nossos cooperados?
Em 1987, Chico Buarque traduziu para o nosso idioma um musical italiano que eu gosto muito, chamado Os Saltimbancos. A história que é traduzida para o nosso idioma, fala sobre quatro animais que saem do campo, vão para a cidade e para sobreviver precisam cooperar. Era um cachorro, uma galinha, uma gata e um jumento. E eles, em vários momentos cantam, talvez aquele que seja o mais forte dos nossos lemas, “Todos juntos somos fortes, todas juntas somos fortes. Todos e todas somos fortes”. Aliás, há um determinado momento nesse espetáculo musical em que um dos animais diz “Um bicho só é só um bicho”.
Daí que cooperar nos dá a densidade e o vigor necessário para que a gente siga adiante com sucesso, com alegria, com decência. Isso nos coloca de um lado, a urgência da coragem para fazê-lo. Por outro lado, a capacidade da humildade para aprender a fazer melhor. Todos juntos. Todas juntas. Somos fortes.
Por Redação MundoCoop – Fernanda Ricardi
Entrevista exclusiva publicada na Revista MundoCoop edição 109
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