Perto do início dos anos 2.000, a cooperativa C.Vale, no Oeste do Paraná, tinha apenas 0,5% de seu faturamento ligado à industrialização de grãos, leite e carnes entregues por seus 25 mil associados. Hoje, esse índice já chega a 23% e a meta é bater nos 50%. Quanto maior o valor agregado às commodities nas fábricas, maior também a fatia do lucro repassado, que no cooperativismo se chama “sobra”. Em 2021, apesar de quebra na safra de soja devido à estiagem no Sul, “sobraram” para os cooperados da C.Vale R$ 130 milhões – a tal segunda renda com que muitos trabalhadores sonham.
O percentual do lucro que é redistribuído costuma ser decidido em assembleia pelos próprios cooperados. Foi seguindo essa premissa que a Coamo, maior cooperativa agrícola da América Latina, distribuiu no início do ano R$ 689 milhões de sobras a seus 30 mil associados, guardando R$ 1,14 bilhão dos lucros para novos investimentos.
No caso da C.Vale, que atua no PR, SP, MT, MS, SC, RS e Paraguai, o setor industrial já responde por 63% das 13 mil vagas diretas de trabalho. Além da marca própria, boa parte dos produtos transformados levam o selo Frimesa, nome comercial da intercooperativa que funciona em sociedade da C.Vale com Copagril, Lar, Copacol e Primato.
A industrialização acaba funcionando como um colchão para amortecer crises e oscilações no mercados das commodities. “Isso fica mais claro nos períodos seguintes a problemas climáticos. Para o produtor, ajuda a superar frustrações de safra mais facilmente porque ele tem uma segunda renda para se manter. Para a cooperativa, reduz a oscilação do faturamento e nos permite investir com mais segurança”, avalia o presidente da C.Vale, Alfredo Lang. A cooperativa investe R$ 650 milhões numa nova esmagadora de soja em Palotina, com capacidade de processar até 3 mil toneladas por dia. Isso dará autossuficiência na produção de rações para frangos, suínos, peixes e bovinos dos integrados.
Aurora é pioneira e exemplo de ganho de escala
O modelo que torna os agricultores sócios da industrialização de seus próprios produtos tem em outra cooperativa, a Aurora, de Santa Catarina, um de seus precursores. Desde 1969, a Aurora é a marca estampada nas embalagens de produtos industrializados a partir de matéria-prima fornecida por 11 cooperativas do Oeste de Santa Catarina, com 60 mil associados. “Se pegar o número de associados mais os funcionários, são mais de 100 mil famílias. Concentramos tudo nas mãos da Aurora, que é a cooperativa central, para não haver concorrência entre as próprias cooperativas e para termos ganho de escala”, conta Júlio Bridi, gerente industrial da Cooperalfa, a maior das associadas, fundada em 1979.
Com frequência, são as necessidades dos cooperados que abrem novas oportunidades de negócio, que depois se tornam cases de sucesso replicados em larga escala. Foi assim, para atender filiados em locais de pouco comércio e infraestrutura, que muitas cooperativas entraram por exemplo nos setores de supermercados e postos de combustíveis. A própria C.Vale já possui nove hipermercados de marca própria, sendo que um dos mais novos, inaugurado no final de 2020, em Assis Chateaubriand (PR), ocupa área de 22 mil m2, tem duas salas de cinema e restaurante para 680 pessoas.
Em todo o Brasil, existem cerca de 1.200 cooperativas agropecuárias, cujos índices de industrialização chegam a 25% nos produtos de origem vegetal e 17% nos de origem animal. Essa média, no entanto, não corresponde nem de perto ao desempenho de estados mais tradicionais no cooperativismo, como Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. No caso paranaense, 58% da produção primária das cooperativas passam por um processo de industrialização e agregação de valor. E 48% do faturamento vêm dos processos de industrialização.
Modelo permite que pequenos produtores virem “industriais”
Por trás de empresas que faturam mais de R$ 1 bilhão por ano, ou R$ 24,6 bilhões, caso da Coamo, a maior cooperativa agrícola da América Latina, estão milhares de pequenos cooperados. “É um exemplo clássico de que a união organizada tem tudo para dar certo. O desafio é o financiamento. Os custos num processo de agroindustrialização são muito altos, por isso a gente mantém uma briga sistêmica para que as linhas de investimentos atreladas ao Plano Safra sejam mantidas e tenham algum tipo de fortalecimento. Em paralelo, as cooperativas têm buscado financiar seus processos, para dar condições de um planejamento crescente a longo prazo”, assinala João Prietto, coordenador do ramo agropecuário das Organizações das Cooperativas do Brasil (OCB).
Nos Campos Gerais do Paraná assiste-se a uma corrida para industrialização do leite. Quem vive acossado para acelerar o passo são os executivos das cooperativas da região, sempre em busca de soluções para dar conta de volumes cada vez maiores entregues pelos associados. Nesta bacia ficam Castro e Carambeí, municípios líder e vice-líder da produção leiteira no Brasil, com 588 milhões de litros por ano. É piada comum na Unium, intercooperativa formada pela Castrolada, Frísia e Capal, que os descendentes de holandeses da região “não sabem brincar” de produzir leite. Atualmente, entregam 2,65 milhões de litros por dia, e com viés de alta.
“A média de produção de leite por vaca, por dia, no Brasil, deve estar próximo de 5 litros. Aqui, é de 29 litros, e com facilidade você encontra rebanhos produzindo 40 litros vaca/dia. Por isso a gente fala que os produtores aqui não sabem brincar. Se um deles faz um barracão para 300 vacas, produzindo 30 litros leite/vaca por dia, já acrescentamos 9 mil litros à produção. Imagine se cem produtores resolverem aumentar desse jeito? Por isso a Unium Lácteos precisa andar na frente, abrindo a parte indústria para receber esse crescimento, que é de 8% ao ano”, sublinha Rogério Wolf, coordenador comercial da Castrolanda.
Torre de leite em pó e queijaria: ordem é agregar valor
A estratégia da Unium é ficar cada vez menos exposta às variações de preço do leite em caixinha UHT, que neste ano viveu a gangorra de bater em 8 reais o litro pago pelo consumidor e, agora, retrocedeu para 4 reais, o que não fecha a conta para quem produz. A saída tem sido buscar formas de agregar valor à qualidade diferenciada da matéria-prima local, reconhecida nacionalmente. Foi o que motivou a construção de uma torre de produção de leite em pó em 2020, com capacidade diária de processar 600 mil litros, funcionando como estoque regulador para garantir preços e vendas mais equilibrados. Dali sai também o primeiro MPC – Milk Protein Concentrate – produzido no Brasil, destinado ao mercado de bebidas funcionais e suplementos alimentares.
O próximo passo na corrida da industrialização das cooperativas ligadas à Unium está sendo dado em Ponta Grossa, onde avança a construção de uma queijaria, com investimento de R$ 460 milhões. O mercado brasileiro de queijos ainda tem muito a crescer, basta comparar o consumo per capita de 5 kg de queijo por ano com o da Alemanha, por exemplo, que é de 37 kg, ou dos vizinhos Uruguai e Argentina, onde a média é de 11 kg. O queijo, além de agregar valor, é uma forma estratégica de driblar as sazonalidades e estocar os excedentes de produção, já que cada quilo de queijo consome cerca de dez litros de leite.
Produtores de leite vão lucrar também no mercado da cerveja
Na avaliação de Willem Bouwman, diretor-presidente da Castrolanda e um dos diretores da Unium, a queijaria consolida o conceito da intercooperação, já que, com três cooperativas “o investimento para um projeto dessa magnitude fica mais leve e possível”. O gerente comercial da Castrolanda para São Paulo, Egídio Maffel, resume o que significa a intercooperação: “Só produzir leite e vender matéria-prima não é suficiente para conseguir faturar. Você acaba se entregando como vaca para couro. Hoje, pela intercooperação, nós temos condição de fazer as fábricas girarem e funcionarem. Não ficamos totalmente expostos às variações de mercado, e damos condições para que o produtor continue crescendo”.
E que maneira melhor de se proteger das oscilações de mercado do que um produtor de leite lucrar também com cerveja? É o que está acontecendo com um pool de seis cooperativas paranaenses, dentre elas as três que compõem a Unium, lideradas pelo know-how dos descendentes de alemães à frente da Cooperativa Agrária, de Guarapuava. Os sócios intercooperados estão construindo em Ponta Grossa (PR) uma nova maltaria, com investimentos de R$ 1,5 bilhão e capacidade anual de 240 mil toneladas (que correspondem a 15% da demanda nacional). Com a expansão, a Agrária Malte se colocará entre as dez maiores empresas de malte do mundo, totalizando 600 mil toneladas anuais. O brinde da inauguração, em 2023, poderá ser feito com leite ou cerveja. Tanto faz. Afinal, nesse jogo, tudo intercoopera.
Fonte: Gazeta do Povo
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