Nos últimos anos as cooperativas de crédito se transmutaram para um modelo de negócio muito próximo ao de bancos digitais e fintechs. Buscando agregar produtos e serviços que fazem parte do dia a dia do cooperado, o setor passou a incorporar práticas que até então, eram vistas como exclusivas de instituições bancárias tradicionais. Diante desse contexto, a perda da essência cooperativista tornou-se uma preocupação real. Como continuar a atuar junto ao cooperado sem deixar de lado o que torna as cooperativas aquilo que são? Apostando naquilo que destaca o setor em meio a um mercado cada vez mais competitivo, a reafirmação da essência do cooperativismo têm sido a ferramenta principal para elevar o movimento à uma posição de destaque.
Entre tantos fatores que são apontados como os criadores desse sentimento de perda dos princípios cooperativistas, está o boom digital visto nos últimos anos, cenário que se intensificou com a chegada da pandemia. Contudo, tal transformação do setor remete ao final do século passado, como explica Marcelo Cárfora, consultor especialista em cooperativismo de crédito. “A mudança já vinha ocorrendo, antes mesmo do “boom” dos bancos digitais e fintechs. Tudo começou a partir do momento no qual grandes sistemas cooperativos de três níveis fundaram seus bancos cooperativos, no final dos anos noventa. Havia grande dependência das demais instituições bancárias, desde o início do cooperativismo de crédito brasileiro, tanto para as cooperativas aplicarem seus recursos excedentes como para ofertarem outros serviços financeiros”, afirma.
Na busca por um maior catálogo de produtos, criou-se o processo de “bancarização”, que consiste na incorporação de práticas e modos de atuação dos bancos tradicionais, pelas cooperativas. Na corrida pela atenção do público, as cooperativas de crédito buscaram trazer para si serviços essenciais para o dia a dia, incorporando a esses produtos o modo de atuação do setor, com atendimento humanizado e próximo ao cooperado.
Se por um lado a chegada do digital é vista como um fator de fragilização do relacionamento que compõe a base do movimento, na prática as cooperativas rapidamente mostraram que é possível manter o diferencial do setor mesmo através dos canais digitais, ao mesmo tempo em que maximizam resultados, atraem mais cooperados e impactam mais comunidades.
Resgate da identidade
Diferentemente de bancos e outras instituições, as cooperativas de crédito não possuem como foco apenas o oferecimento de produtos e serviços. E é neste quesito em que elas se diferem de suas concorrentes. Mesmo com a aproximação a práticas do mercado tradicional, o setor segue com o pilar que tornou o cooperativismo a potência que é hoje. Através de ações e programas com foco em educação financeira, as cooperativas colocam em prática o princípio do interesse pela comunidade, impactando vidas muito além da simples oferta de serviços a condições mais favoráveis ao cooperado.
Neste contexto, grandes sistemas como Sicredi e Sicoob atuam diariamente com programas de apoio, colocando no atendimento a essência que alguns temem desaparecer pela bancarização antes mencionada. Para Cárfora, tal posicionamento é um dos grandes exemplos de como o setor deve conduzir suas atividades, sem deixar de lado os motivos que fizeram o movimento surgir em primeiro lugar. Essa escolha, apesar do que alguns entusiastas do mercado possam pensar, não necessariamente passaria pela abolição de práticas já consolidadas na atualidade.
“O cooperativismo nasceu em momentos de crise, e seu surgimento não foi apenas para prestar assistencialismo social, pelo contrário, surgiu justamente para que muitos pudessem se unir, e mutuamente contribuírem para o melhor resultado coletivo. O cooperativismo não teria obtido o sucesso mundial que alcançou, se não tivesse conseguido aliar a essência justamente com os resultados. Praticar a essência não prejudicará os resultados nem ensejará na renúncia de mercados estabelecidos e rentáveis”, comenta.
Ao reafirmar os princípios que fortaleceram as cooperativas de crédito ao longo da história, a percepção sobre a parceria e conexão tornam-se mais fortes, mostrando ao associado que a cooperativa abriga um grupo que realmente o ajudará no que for preciso. “Os cooperados, por conhecerem nosso propósito, tendem a valorizar suas cooperativas e não as abandonam tão facilmente. Já, os cooperativistas, são aqueles que além de entenderam o propósito, ainda absorveram a nossa essência, divulgam nossa doutrina e defendem nosso negócio. São os grandes defensores do cooperativismo, e possivelmente aqueles que, além de disseminar o movimento, participarão ativamente das suas cooperativas, podendo inclusive participar da sua administração, fiscalização ou até mesmo atuando em centrais ou confederações”, comenta. Ao identificarem com clareza tal diferencial, esses cooperados tornam-se agentes de perpetuação do movimento, fortalecendo o ecossistema em todos os seus aspectos.
Por fim, outro elemento exerce um importante papel na consolidação da relação entre cooperado e cooperativa. Além de guiar-se pela máxima de “o cooperado está no centro de tudo”, as cooperativas devem se atentar a novas demandas do mercado, abraçando temas que influenciam diretamente na vida de cada um. Nesta missão, o setor se mostra atento as tendências externas, abraçando temas como a diversidade e o movimento ESG, que traz importantes transformações para a maneira de atuação do mercado. “Além da continuidade da evolução no movimento de aglutinações entre cooperativas e centrais (por meio de incorporações), acredito que o mercado premiará cada vez mais as entidades que atuam baseadas no tripé da sustentabilidade, colaborando com a sociedade e o meio ambiente, adotando as melhores práticas de governança. E para que possamos avançar e nos destacar neste sentido, precisamos unir esforços nas estratégias de educação e disseminação do nosso propósito e valores para o público em geral”, destaca.
Para que as cooperativas de crédito sejam longevas, é fundamental dialogar com as mais diversas gerações e grupos, criando uma verdadeira comunidade que transmita ao próximo a essência que torna o cooperativismo o modelo ideal para o futuro. Para isso, formar e dar voz para indivíduos múltiplos deve ser o principal foco. “As cooperativas precisam transformar o maior número possível de “clientes” em cooperados. E para que o movimento prospere e se fortaleça, precisamos transformar o maior número possível de cooperados em cooperativistas. Em suma: se realizarmos essas transformações em nossas cooperativas, estaremos não somente disseminando, mas ao mesmo tempo, praticando o nosso propósito”, finaliza.
Por Leonardo César – Matéria publicada na edição 110 da Revista MundoCoop
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