Aos 40 anos, mãe de três filhos e avó, Michelle é prova de que o cooperativismo muda realidades. Depois de ficar em situação de rua por anos, e ser levada ao sistema prisional, ela encontrou na cooperativa Sabor do Canto, na região Centro-Sul de Belo Horizonte, uma oportunidade de ressignificar a própria vida, uma chance de ressocialização. Hoje, ajuda outras pessoas vulneráveis a se alimentarem por meio do trabalho desenvolvido na coop, um ciclo virtuoso que se repete tantas e tantas vezes.
“Quando eu ‘morava’ na rua ficava esperando o lixo para tentar achar um lanche e poder comer. Dormia debaixo da marquise. E hoje sou muito grata, nunca imaginava chegar onde cheguei. Hoje junto as coisas que tem aqui em casa para doar para outras pessoas”, explica a cooperada, que gera renda para sustentar a família enquanto faz o bem ao próximo. Ou seja, a atividade cooperativa se estabelece como uma solução de mão dupla ao passo em que fortalece os trabalhadores e a comunidade.
Já no bairro Granja de Freitas, na Coopesol Leste, mais de 30 cooperados separam materiais recicláveis para vendê-los. O processo gera renda para o grupo e também para os catadores de recicláveis que direcionam os materiais para a cooperativa. Por lá, o trabalho ainda auxilia no cuidado com o meio ambiente da cidade. “Então, além de cuidar da sustentabilidade da cidade, também valorizamos o trabalho dessas pessoas [catadores]”, diz Marcos Antônio Elias, diretor-financeiro da coop.
A relevância das cooperativas nunca esteve tão evidente. Segundo especialistas, o modelo de negócios que alia objetivos financeiros e causas sociais comuns a um grupo de pessoas é um farol para o futuro dos pequenos negócios. A ONU (Organização das Nações Unidas), inclusive, elegeu 2025 como o ano internacional das cooperativas – a primeira vez foi 13 anos atrás. O título reconhece a capacidade das instituições em apoiar o desenvolvimento sustentável tanto de pessoas quanto do coletivo.
Na reportagem “Ciclo virtuoso: a força das cooperativas na mudança de realidades locais”, o BHAZ mostra como coops auxiliam nas mudanças de vidas e comunidades a partir dos trabalhos desenvolvidos. Especialistas em economia, integrantes de iniciativas e pessoas beneficiadas pelos trabalhos nos ajudam a entender as lições, soluções e desafios do modelo cooperativista.
Sabor do Canto: alimento e dignidade
Michelle Aparecida Domingos Lopes esteve em situação de rua desde os 10 anos e conhece bem as vulnerabilidades de quem passa pelo mesmo. Após a morte dos pais, ela ficou desamparada e teve que sobreviver sozinha nas ruas da capital mineira: “Quem me vê hoje, não imagina o que eu já passei”, explica a belo-horizontina.
Em Belo Horizonte são mais de 5 mil pessoas sem um teto e sem garantia da próxima refeição, segundo dados da Prefeitura em estudo realizado com a UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Segundo o Censo Pop 2022, a maioria da população vulnerável nas ruas é formada por homens (84%) com idade média de 42 anos. As mulheres são 16% e têm em média 39 anos. Mais de 80% das pessoas em situação de rua são pardos ou pretos.
Após tantos anos nas ruas, Michelle acabou presa. Ela estava no sexto mês de gestação e conheceu a Sabor do Canto ao deixar o sistema prisional. “Saí de lá com minha bebê nos braços e sem fonte de renda. Foi aí que fiquei sabendo que tinha aberto o projeto Canto da Rua Emergencial. Surgiu essa proposta de economia solidária e o Sabor do Canto”, diz.
‘Depositaram confiança em mim’
Além de conseguir renda para manter a família, Michelle também teve oportunidade de estudar por meio da Sabor do Canto e ficou responsável pelo financeiro da coop por três anos. “Fui capacitada pelos professores da PUC. Eu estudei só até a quinta série, mas aprendi bem. Eles me deram essa responsabilidade, mesmo sabendo que eu não tinha estudo, já tinha passagem por coisas ilícitas, eles depositaram confiança em mim”, diz a cooperada com a autoestima revigorada. “Como vivi quase a vida toda na rua, não sabia fazer nada. Inclusive, até hoje, estou aprendendo”, pontua.
A Sabor do Canto foi concebida em 2020 para atender pessoas em situação de vulnerabilidade social de BH. A iniciativa se estabeleceu, inicialmente, como um braço da ação Canto da Rua Emergencial, comandada pela Pastoral de Rua da Arquidiocese de Belo Horizonte. O projeto oferecia refeições, banho e assistência de saúde aos que precisavam no período crítico da pandemia de Covid-19.
Em 2024, o Canto da Rua evoluiu e, hoje, a Sabor do Canto é uma cooperativa estruturada, que funciona em uma cozinha localizada na rua Itajubá, no bairro Floresta. É lá que Michele passa a maior parte dos dias junto de outros seis cooperados. “Tive atendimento no Centro Pop (Centro de Referência para Pessoas em Situação de Rua) por muitos anos, então é gratificante eu prestar um trabalho onde um dia fui assistida. É muito bom poder ajudar pessoas que estão na mesma situação de onde eu saí”.
‘Ganhamos mais de um salário mínimo’
A Sabor do Canto produz e distribui, de segunda a segunda, de mil a 1,1 mil lanches por dia. Mensalmente, são 28 mil unidades destinadas a pessoas em trajetória de rua. As opções de sabores variam: pães com mortadela e queijo, patê e cachorros-quentes. A Cáritas, órgão vinculado à CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), compra os lanches dos cooperados, pagando R$ 2,95 por lanche e R$ 3,15 por cachorro-quente. Mensalmente, a renda média bruta da cooperativa é de R$ 36 mil.
“Desses R$ 36 mil, a gente tira os insumos, compras, embalagens e o que sobra a gente divide entre a gente. Atualmente, ganhamos mais de um salário mínimo”, explica Isabela Domingos, sobrinha de Michelle e também cooperada da Sabor do Canto.
‘Ajudar outras pessoas é muito gratificante’
Isabela revela que, até então, nunca tinha recebido mais de R$ 900 em outras ocupações. “Peguei meu pagamento assim e falei: ‘meu Deus’, aí comecei a chorar. Falei: ‘Nossa Senhora, não é possível que eu tô ganhando esse valor aqui, não é possível que eu estou recebendo para fazer um trabalho bom, um trabalho que não tinha cobrança, um trabalho legal’. Sem palavras”, conta, emocionada.
A jovem de 23 anos nunca esteve em trajetória de rua, mas viveu em contexto de vulnerabilidade. “Meu pai era usuário de drogas. Minha mãe e eu moramos um tempo em uma ocupação no Centro de BH”, conta. Crescendo em um ambiente instável, ela viu as dificuldades enfrentadas por muitas famílias.
Para Isabela, o trabalho na Sabor do Canto é mais do que uma fonte de renda, é uma forma de retribuir à comunidade e ajudar outras pessoas a superarem as dificuldades que ela mesma enfrentou. A jovem conta que a transição de trabalho voluntário para uma cooperativa rentável, no entanto, não foi fácil. “Começou com um sonho distante. Foi um processo muito longo, e com pessoas em situação de rua, que são geralmente instáveis. O esforço para manter o grupo unido era constante,” lembra Isabela. Após cerca de dois anos de dedicação, a cooperativa foi oficialmente formalizada.
A formalização da Sabor do Canto contou com assessoria da Ocemg (Sindicato e Organização das Cooperativas do Estado). O programa +Coop Desenvolvimento Sustentável promove o desenvolvimento de comunidades a partir do fomento de cooperativas de pequeno porte. A Ocemg dá orientações legais e comerciais, além de assessorar com treinamentos, workshops e orientações de governança.
“Dentro do meu grupo, tem duas pessoas que são muito importantes para mim, como minha tia, que também já esteve em situação de rua. Ver que hoje a gente pode ajudar outras pessoas é muito gratificante,” destaca a jovem. E a tia Michelle concorda.
“Minhas meninas ficam muito felizes [com o trabalho dela]. Não escondo nada, nem uma vírgula delas, de tudo o que vivi, tudo o que passei. A vida toda, ou eu morava em ocupação ou morava de favor na casa de alguém. Tudo que tinha em casa era de doação. E hoje não. Hoje junto as coisas que tem aqui em casa para doar para outras pessoas”, celebra.
A cooperada ressalta que a ação para ajudar a transformar vidas extrapola o que faz na cooperativa.
“Meu trabalho não é só fazer o lanche, pegar meu dinheiro e ir embora. Ando pelas ruas de BH e todo mundo me conhece e acaba pedindo ajuda. Se eu puder, pego, coloco num Uber, levo para o hospital. Se não puder, vou atrás da ajuda de alguém”, diz.
E a cooperativa Sabor do Canto continua crescendo e buscando novas formas de ampliar seu impacto. Um novo local para aumentar a capacidade produtiva está sendo buscado. “Queremos continuar ajudando mais pessoas e oferecendo um lanche mais saudável e nutritivo,” afirma Isabela.
Coopesol Leste: mãos recolhem e acolhem
Há mais de 20 anos, uma cooperativa de Belo Horizonte se dedica a manter a cidade mais limpa e sustentável. A Coopesol Leste (Cooperativa Solidária dos Trabalhadores e Grupos Produtivos da Região Leste) nasceu em uma casinha no Alto Vera Cruz e hoje conta com cerca de 30 cooperados que trabalham, todos os dias, com a separação de materiais que podem ser reaproveitados.
“A cooperativa nasceu em 2003 em uma casa muito pequena. Como não tínhamos um espaço ainda, fazíamos apenas o trabalho de artesanato com material reciclado. No decorrer do tempo, uma ONG nos cedeu recursos e, em 2010, conseguimos um galpão que é onde estamos desde então. Nosso trabalho é fazer a separação do material reciclável”, diz Marcos Antônio Elias, diretor-financeiro da Coopesol Leste.
Parte do lixo descartado em BH e recolhido pela Superintendência de Limpeza Urbana, por meio do trabalho de coleta seletiva, é levado ao galpão. A cooperativa trabalha com vários tipos de recicláveis: latinhas de cerveja e refrigerante, caixinhas de leite e até mesmo isopor. Depois de separado, todo o material é vendido para indústrias ou terceiros. Segundo Marcos, o quilo de latinhas custa R$ 6,50.
“A gente ainda não tem um planejamento próprio de coleta seletiva, mas, ainda assim, quando aparece alguém com muito material, recolhemos. Também acolhemos os catadores da região e compramos o material deles por um preço melhor do que o que eles vendem para os ferros-velhos. Então, além de cuidar da sustentabilidade da cidade, também valorizamos o trabalho dessas pessoas”, pontuou.
Os cooperados também se preocupam em educar a comunidade em relação ao descarte do lixo. Para isso, eles promovem eventos e palestras que visam ensinar crianças sobre a importância da reciclagem. “A cada seis meses fazemos palestras em escolas sobre a importância da coleta seletiva para a limpeza e organização dos espaços urbanos e para a preservação do meio ambiente. Explicamos como a reciclagem evita a destruição de recursos naturais”, explica.
Desafios diários
Mesmo recolhendo cerca de 900 toneladas de reutilizáveis somente em 2023, o trabalho realizado na Coopesol Leste esbarra em muitas dificuldades. A principal delas, segundo Marcos Antônio, é a falta de valorização e remuneração dos trabalhadores.
“Nosso salário depende muito do preço do material. A proposta do projeto das cooperativas é que ninguém ganhe menos que um salário. Essa é nossa luta: que a nossa remuneração possa animar e manter o pessoal trabalhando com reciclagem”, declarou. “Nós também realizamos a coleta da vizinhança, fazemos nos bairros que ainda não tem coleta seletiva. Cobramos o valor simbólico de R$ 17 por mês para fazer essa coleta”.
Em Minas Gerais, mais de 54 mil pessoas estão empregadas em cooperativas e pelo menos 700 municípios contam com iniciativas de cooperação. Segundo a Ocemg (Sindicato e Organização das Cooperativas do Estado), cerca de 40% da população mineira está envolvida com o cooperativismo. Crédito, saúde, educação, alimentação e meio ambiente são áreas de atuação das coops no estado.
Andréa Sayar, gerente de Educação e Desenvolvimento Sustentável do Sistema Ocemg (Sindicato e Organização das Cooperativas do Estado), destaca que além de impulsionar o nível da educação local de uma comunidade e criar vagas de emprego, as coops geram trabalho.
Ou seja: criam oportunidade para toda uma cadeia produtiva de negócios que prestam serviço ou são fornecedores do grupo. “Uma cooperativa, por menor que seja, necessariamente movimenta a economia. E o que vem a reboque disso é o desenvolvimento social”, defende.
Nos últimos cinco anos, a movimentação econômica do segmento cresceu 120,7%. Os dados mais recentes divulgados pela entidade mostram que há 803 iniciativas em Minas Gerais.
O diretor-financeiro da Coopesol, Marcos Antônio Elias, explica que entrou no universo das cooperativas por não encontrar no mercado formal de trabalho a segurança e estabilidade que buscava. Ele então realizou cursos de capacitação para trabalhar com a reciclagem e continua buscando se desenvolver até hoje. “Comecei a estudar depois que entrei aqui. Tinha só a sexta série, mas consegui começar a faculdade, fiz cursos no Sebrae, cursos de capacitação de administração”.
Atualmente, a Coopesol Leste conta com nove homens e 25 mulheres cooperados. Marcos fala sobre como o trabalho desenvolvido na cooperativa busca valorizar principalmente as trabalhadoras, que, na maioria das vezes, enfrentam uma dupla jornada.
“As mulheres que trabalham aqui, a maioria tem filhos. Elas não veem no mercado formal um modo de trabalhar e estar junto com os filhos. Nós damos toda a liberdade nesse sentido. Por isso, a maioria das mulheres prefere trabalhar aqui com a gente do que fazer faxina ou trabalhar em supermercado. Aqui elas vão ter a liberdade que elas têm que ter”, diz ele.
Salomé Ferreira Estevão é uma das mulheres que viu na Coopesol Leste a chance de ter uma ocupação e, mais do que isso, o sustento da família. Ela conta que passava regularmente pelo galpão e que um dia decidiu pedir uma oportunidade. “Já trabalhei de vendedora, de cuidadora de crianças, mas na cooperativa foi onde mais me adaptei e tive estabilidade”, diz. “Faço triagem dos recicláveis, ajudo nas cargas, a encher caçamba. Se precisar, faço um pouco de cada coisa”, explica.
A catadora revela que conseguiu mais estrutura para ela e as filhas a partir do trabalho feito na coop. “Sustento minha família com o dinheiro que vem daqui e já conquistei muitas coisas. Comprei uma moto e já terminei de pagar. Agora, tô lutando pela moradia, pela casa própria que é algo mais difícil, mas meu trabalho me ajuda bastante”, diz. “Tudo que tenho na minha casa de móveis consegui com o trabalho na reciclagem, pago o escolar das minhas filhas com o trabalho da reciclagem, então minha vida é reciclagem, tudo que eu conquistei até hoje é reciclagem”, conta orgulhosa a cooperada.
No entanto, nem tudo são flores e Salomé conta ter sofrido preconceito por trabalhar como catadora de recicláveis. “É um trabalho que não é muito valorizado, a gente sofre muito preconceito, as pessoas demonstram muito preconceito. Já fui chamada de mulher do lixão, que trabalho com lixo. Não tenho vergonha nenhuma, ser catador é um trabalho como qualquer outro. Você precisa ter é muita disposição”, reflete ela.
A mulher define o trabalho desenvolvido na Coopesol como de extrema importância, tanto para os trabalhadores quanto para o meio ambiente. Segundo ela, é necessário que as pessoas tenham mais empatia e valorizem a cadeia de reciclagem.
“Vamos imaginar se todo esse material que vem para a reciclagem fosse queimado, como seria? A gente já vive em um mundo muito poluído, isso só pioraria as coisas. Então, a gente faz o que pode, mas a gente queria ter um pouco mais de ajuda para ter condições de fazer um trabalho cada vez melhor”, explica. “Como conquistei tudo com cooperativa, cooperativa hoje pra mim é a minha vida. Não tenho vontade nenhuma de trocar o meu trabalho”, define Salomé.
Para Felipe Magalhães, pesquisador e professor de geografia econômica da UFMG, o cooperativismo, ao lado de outras economias, como a solidária e a popular, tem o potencial de ser a solução econômica contemporânea para atenuar ou reverter o cenário da crise social, política, econômica e ambiental.
“Existe essa possibilidade dos processos serem definidos coletivamente e do ‘modus operandi’, o jeito de funcionar da produção, acontece depois dessa definição. Acho que a cooperativa tem uma grande importância no cenário contemporâneo em relação a esse potencial que ela guarda”, afirma.
Sarom e São Roque de Minas: união é força
A cidade de São Roque de Minas, localizada na região da Serra da Canastra, a pouco mais de 300 quilômetros de Belo Horizonte, é um exemplo notável de como o cooperativismo pode transformar uma comunidade. O município, que enfrentou uma grave crise econômica nos anos 1990 após o fechamento da única agência bancária local, encontrou no cooperativismo uma saída para o desenvolvimento e a prosperidade.
João Carlos Leite, presidente da cooperativa de crédito Sicoob-Sarom, compartilhou a trajetória que levou a cidade de um cenário de desolação a um status de prosperidade compartilhada. “Nos anos 1990, a agência da Minas Caixa fechou, deixando a população sem serviços bancários e obrigando os moradores a se deslocarem cerca de 100 quilômetros para resolver suas necessidades financeiras. Isso esvaziou a economia local e gerou um êxodo de moradores”, relembra João.
“As pessoas iam abrir contas e gastavam o dinheiro em outras cidades, voltavam com as mãos cheias de sacolas. E o dinheiro passou a circular fora de São Roque”, lembra. “Moral da história: o fechamento da Minas Caixa destruiu a pequena economia de São Roque e criou uma baixa autoestima com as pessoas querendo ir embora”, diz.
le lembra que ia para para a universidade e retornava pouco para a cidade. Quando voltava e via a situação, pensava: ‘nossa, que miséria, que lugar horrível, então essa era a minha percepção’. “Os comércios não vendiam, então todo mundo começou a quebrar”, diz João.
Segundo o presidente da cooperativa, tentativas de abertura de novas agências bancárias na cidade falharam. De lá pra cá, muita coisa mudou e São Roque de Minas ganhou vida nova.
Mais que uma cooperativa, vida nova
A solução veio da união de produtores locais, que decidiram criar uma cooperativa de crédito para atender às necessidades bancárias básicas da população. “Juntamos um grupo de produtores e resolvemos criar uma cooperativa de crédito. Eu era o quarto filho de São Roque com curso superior. Meu pai e os amigos dele me botaram como presidente da cooperativa”, conta.
“Nós fundamos a cooperativa com recursos dos produtores de leite ‘ilegais’, feito de leite cru. A comunidade se mobilizou: o mecânico virou gerente, o dono do boteco se tornou contador, e assim começamos”, conta João, destacando o papel essencial da educação e da capacitação dos moradores. “Fomos crescendo e resgatando a autoestima do nosso povo. ‘Agora nós temos um banco, o banco é nosso, está dando certo’, as pessoas diziam”, relata.
“[…] o mecânico virou gerente, o dono do boteco se tornou contador, fomos crescendo e resgatando a autoestima do nosso povo”, diz o presidente da Sicoob-Sarom, João Carlos Leite.
Desde sua fundação, a Sicoob-Sarom não parou de crescer. “Em 1991, já tivemos um pequeno lucro de dois mil dólares. Nos anos seguintes, o lucro continuou a aumentar, e a autoestima da população foi resgatada. Hoje, a cooperativa administra mais de R$ 1 bilhão em ativos, possui 23 agências e emprega 316 colaboradores, sendo mais de 100 em São Roque de Minas”, celebra o presidente.
‘Ciclo virtuoso de crescimento’
“Toda hora que eu pego um dinheiro, que é a poupança interna do meu povo, e empresto para os empreendedores, que vão produzir ativos internos econômicos, vai entrar dinheiro. Nós vamos gerir esse dinheiro, contratar mais colaboradores em São Roque e nós “startamos” um ciclo virtuoso de crescimento”, explica João.
O impacto do cooperativismo não se restringiu aos serviços bancários. A cooperativa passou a financiar diversos projetos, desde a agricultura até a educação. “Emprestamos mudas de café aos produtores, triplicamos a produção e geramos empregos, o que melhorou significativamente a qualidade de vida das famílias”, afirma o presidente da coop.
Além disso, a criação da Cooperativa Educacional de São Roque de Minas, em 1998, garantiu educação de qualidade para os filhos dos cooperados, preparando-os para o futuro e evitando o êxodo de jovens em busca de melhores oportunidades. “Nosso objetivo é dar ensino pedagógico de qualidade para os nossos filhos aqui para que os pais não mudassem e eles não quisessem voltar para trás. Nós criamos a coop Sarom, a entidade mantenedora do instituto Ellos de educação”.
A Sicoob-Sarom também investiu em infraestrutura digital, proporcionando internet para todas as escolas do município e promovendo cursos de informática, robótica e programação. “Estamos formando cidadãos com um mindset crítico, ensinando valores e princípios cooperativistas, o que tem se refletido em resultados impressionantes no ENEM e no ingresso em universidades de ponta”, explica o presidente da coop.
O cooperativismo impulsionou ainda a economia local através da valorização dos produtos da região, como o famoso queijo Canastra. “Legalizamos a produção do queijo, o que aumentou a renda dos produtores e atraiu turistas, movimentando a economia local. Recentemente, qualificamos outros produtos da Canastra, como café, mel e charcutaria, agregando valor e atraindo ainda mais visitantes”, diz João.
Rodrigo Lima Rangel, analista de estudos econômicos do Sistema OCB (Organização das Cooperativas Brasileiras), ressalta que o cooperativismo tem como objetivo gerar riqueza tanto para a comunidade quanto para os cooperados. É o que ocorre em São Roque de Minas. “A gente também teve um aumento da geração de empregos formais, do valor de exportações e do saldo comercial. Então, o cooperativismo tem um efeito multiplicador”, destaca.
Mesmo no período da pandemia, e apesar da economia mundial fragilizada, as cooperativas permaneceram estáveis. “A gente não observou o declínio do cooperativismo. Muito pelo contrário: uma das metas como sistema, até o ano de 2027, é que ele produza R$ 1 trilhão. Foram R$ 656 bilhões até agora”, diz o analista.
Municípios com cooperativas se desenvolvem mais
Tal qual São Roque de Minas, muitos outros municípios do estado se desenvolveram após a criação de cooperativas. Para quem vive nestas cidades, a diferença é quase palpável. Mas qual o tamanho do impacto econômico real dessas iniciativas sobre as cidades?
Para mensurar esses benefícios, a Ocemg encomendou à Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas) um estudo inédito para investigar e avaliar como as coops afetam a economia local.
O relatório, divulgado em agosto de 2023, revelou que cada R$ 1 investido no cooperativismo gera R$ 1,65 de produção na economia da comunidade. Em termos de PIB (Produto Interno Bruto), há um aumento de R$ 5,1 mil por pessoa no município com coops.
Municípios com cooperativas também geraram 28,4 empregos formais a mais, por 10 mil habitantes, do que aqueles sem coops.
O futuro de São Roque de Minas parece ainda mais promissor. Com a previsão de alcançar R$ 1 bilhão de poupança interna até 2046 e a implementação de modelos de gestão ambidestros, que equilibram resultados econômicos e sociais, a cooperativa está pavimentando o caminho para a autossuficiência e a prosperidade duradoura. “Constatamos que, quanto mais atuamos com conhecimento e dinheiro para resolver problemas sociais, maiores são os resultados econômicos e financeiros. Acabar com a pobreza nos torna mais ricos”, diz João Carlos Leite.
Fonte: BHAZ
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