A Secretaria Estadual de Agricultura (Seag) aponta que o Espírito Santo tem 108 mil propriedades rurais, das quais 75% são de agricultura familiar, o que evidencia a importância desse segmento, que tem apostado na união como uma das formas de driblar as dificuldades e se fortalecer coletivamente. Um importante aliado é o cooperativismo, que contribui para a redução do êxodo rural, a efetivação da sucessão familiar, o incentivo ao protagonismo feminino, e uma vida saudável para os trabalhadores rurais e consumidores, por meio da produção orgânica.
O Cadastro Nacional de Produtos Orgânicos e a Comissão de Produção Orgânica do Espírito Santo (CPOrg-ES) destacam que a agricultura familiar é responsável pela maioria da produção orgânica em solo capixaba. Os dados, de 2023, mostram que há 404 produtores certificados no Espírito Santo, sendo 342 deles, ou seja, 85,65%, agricultores familiares. Os homens aparecem como responsáveis por 254 propriedades e as mulheres por 127. As principais culturas produzidas são banana, inhame, couve, abóbora, alface, batata, cebolinha, laranja, limão e aipim.
O Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) considera como orgânico, seja in natura ou processado, o produto “obtido em um sistema orgânico de produção agropecuária ou oriundo de processo extrativista sustentável e não prejudicial ao ecossistema local”. Ele deve ser certificado por organismos credenciados no Mapa, “sendo dispensados da certificação somente os produzidos por agricultores familiares integrantes de organizações de controle social cadastradas no Mapa, que comercializam exclusivamente em venda direta aos consumidores”.
Quando se fala em agricultura familiar, as pessoas normalmente pensam em cidades do interior, mas no Espírito Santo há trabalhadores que atuam nesse segmento na Região Metropolitana, inclusive na produção orgânica. Alguns deles se encontram em Cariacica, que tem 56% do seu território na zona rural. O que para muitos, baseados em um estereótipo de desenvolvimento pautado nas grandes edificações, indústrias e intenso tráfego de veículos, pode ser encarado como atraso, para os agricultores, notadamente os da região de Sabão, conhecida como Vale da Banana, é visto como um potencial. Não é à toa que o município se tornou o maior produtor de banana orgânica da América Latina, atividade que tem sido ainda mais impulsionada pela Cooperativa de Agricultura Familiar de Cariacica (CAFC).
Com sede no centro da cidade e presidida por Davi Dutra de Barcelos, a cooperativa foi criada em 2018, a partir de uma outra entidade de organização dos trabalhadores do campo, que é o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Cariacica, também presidido por Davi. Hoje, conta com cerca de 300 cooperados no Espírito Santo e um faturamento anual, tanto em 2022 quanto em 2023, de R$ 10 milhões. A cooperativa nasceu em meio às dificuldades na comercialização dos produtos.
“Historicamente, as cooperativas, se você for olhar a nível de Brasil e Espírito Santo, nascem de uma dificuldade que faz os produtores se unirem. Aí juntamos os trabalhadores com o sonho de formar a cooperativa para buscar novos mercados. Na época não estava compensando vender banana. Eu lembro que uma caixa da fruta era R$ 5,00 pago ao produtor. Aí, com a cooperativa, já conseguimos pagar R$ 15”, recorda Davi, que aponta outras conquistas obtidas pelos trabalhadores por meio do cooperativismo, como a garantia de venda e, portanto, de renda, o que não acontece no mercado tradicional.
Outra vantagem de participar da CAFC, enumera Davi, é a maior facilidade de obter assistência técnica, como por meio de parceria entre a cooperativa e o Instituto Capixaba de Assistência Técnica, Pesquisa e Extensão Rural (Incaper), e para obtenção de crédito com instituições como o Sicoob, Sicredi e Banco do Brasil. Embora a cooperativa também trabalhe com produtos convencionais, ele afirma que aliar o cooperativismo à produção orgânica foi uma escolha feita com base na ideia de garantir uma alimentação de qualidade para o consumidor.
“Entendemos que a cooperativa de agricultura familiar tem esse papel de levar a alimentação saudável e valorizar o produtor de orgânico, que tem um importante papel na sociedade, preserva o meio ambiente, não usa agrotóxico, é menos poluente. O produto orgânico traz benefícios para a saúde do ser humano, inclusive, do próprio trabalhador”, defende.
A história do trabalhador rural e cooperado da CAFC, Renato Barbosa de Barcelos, mostra que o cooperativismo na região tem contribuído também para redução do êxodo rural. Para ter uma renda maior, Renato abandonou o campo e foi trabalhar como ajudante de caminhão em uma loja de material de construção. Com a atuação da cooperativa, principalmente no segmento do orgânico, ele se sentiu motivado a voltar para a roça e trabalhar naquilo que realmente gosta, que é a agricultura. “A cooperativa é importante porque antes a gente tinha dificuldade de vender, perdia produto. Hoje tem a CAFC, que leva para fora vários caminhões de produto. É um braço forte”, ressalta.
Ele também mostra satisfação com o convênio da cooperativa com iniciativas como o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), do Governo Federal, que busca garantir alimentação para estudantes matriculados na educação básica pública. “É importante para a gente ficar na roça, é um dinheiro certo, a gente sabe que vai vender. Não é uma aventura como ir até a Ceasa [Central de Abastecimento do Espírito Santo] com vários cachos de banana e não vender nada”, aponta. Renato, que produz banana orgânica, afirma que, além de ter um valor a mais, esse tipo de produto é importante por ser de mais qualidade.
Neto e filhos de agricultor, com seu retorno ao campo o trabalhador rural pôde dar prosseguimento, junto aos irmãos, ao processo de sucessão familiar. “O campo significa tudo para mim. Minha razão de vida está na roça, daqui não saio mais. Estar fora daqui é uma sensação ruim, parece que sempre falta alguma coisa, um pedaço. Isso é difícil. Tem gente que os pais morrem e a primeira coisa que faz é vender a terra e sair para a cidade. Graças a Deus aqui a gente está ficando na roça, uma cultura que a gente tem desde criança”, exalta.
Mercado
O carro-chefe de vendas da cooperativa é a comercialização para o PNAE. “A gente começou a se fortalecer nas vendas através desse programa, destinando grande parte da produção para ele. Aqui, em especial, na CAFC, tem a cultura da banana e já tinha produtores mexendo com banana orgânica. Inicialmente 19 se cooperaram e hoje temos 28 trabalhando com esse tipo de produção”, informa Davi.
Por meio do programa federal, a CAFC atende as prefeituras de Cariacica, Serra e Vitória, na região metropolitana; e Aracruz, no norte. Os produtos chegam a todo o Espírito Santo por meio de convênio com a Secretaria Estadual de Educação (Sedu). O PNAE também possibilitou atender o Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, locais nos quais a cooperativa se faz presente, ainda, no mercado privado, com cerca de 5% do seu volume. As feiras orgânicas da Grande Vitória também são um dos locais de venda, como as dos shoppings Vitória e Boulevard; da Praça do Papa, na Enseada do Suá; e as da Praça Marechal Deodoro, em Cariacica Sede; e em Parque Infantil, bairro localizado nesse mesmo município.
Além da banana in natura, a CAFC vende produtos derivados da fruta: mariola, chips, biomassa, farinha e banana passa. O que mais se destaca é a mariola, embora a cooperativa ainda não tenha fábrica própria. Em 2023, foram 40 mil quilos comercializados. Outro derivado da banana produzido na cooperativa é a biomassa, que, segundo Davi, tende a ser um dos “carros-chefe” no futuro. De acordo com ele, trata-se da banana verde e triturada. “A gente bate ela e serve para fazer sopa, purê, bolo, vitamina, colocar no feijão. É muito rico em proteína, fibra, um produto muito recomendado por nutricionistas”, conta. A biomassa ainda não tem muita entrada no mercado capixaba, mas possibilitou aos trabalhadores, em 2024, um convênio com a Prefeitura de Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro, para a venda dos 40 mil quilos.
Cultura da banana
A cultura da banana em Cariacica, onde predomina a banana prata, ganhou grande impulso na década de 70, quando ainda predominava o café na região. Está presente principalmente nas localidades de Cachoeirinha, Sabão, Roda d’Água e Duas Bocas. Davi atribui esse sucesso na zona rural do município a algumas facilidades inerentes ao plantio da banana. “Não precisa tirar e plantar outra cultura ali, naquele ciclo. É uma lavoura permanente”, explica.
O presidente da cooperativa destaca que esse é um dos fatores que torna mais fácil a produção orgânica dessa fruta. Quando se planta a banana, afirma, não é necessário renovar o plantel, tirar tudo depois de um ano e plantar outro. “Se você olhar, aqui na região, é quase a banana nativa, resistente, de uns 30, 40 anos, que vem até hoje com alta produtividade. Então você tem um ganho muito bom com o meio ambiente, pois não tem queimada, erosão, não precisa arrancar tudo e replantar outro”, ensina.
A própria geografia da região possibilitou o sucesso do plantio da banana. “Nossos terrenos são íngremes, temos uma topografia, terrenos mais acidentados. Outras culturas teriam mais dificuldade. Ao plantar uma cultura de feijão, produz, mas tem que ter um determinado maquinário, para colher é mais difícil, então a banana se adaptou muito bem a nossa região”.
Davi destaca, ainda, que o cultivo da banana perpassa atividades culturais no município. Ele exemplifica com o personagem João Bananeira, do congo de Roda D’Água, que, inclusive, dá nome à Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Cariacica. A tradição oral diz que, na época da escravidão, os negros, para participar das festividades de Nossa Senhora da Penha, padroeira do Espírito Santo, colocavam uma máscara e revestiam seus corpos com folhas de bananeira para não serem reconhecidos. Contudo, para Davi, a influência do cultivo da banana nas ações culturais do município pode ser ainda maior, e a cooperativa já vem contribuindo para isso.
A CAFC organiza a Festa da Banana, que, em 2024, vai para a 10ª edição. O evento normalmente conta em sua programação com atrações musicais, bandas de congo, encontro com empreendedores da cadeia produtiva da banana, almoço comunitário, leilão, concurso do cacho de banana, missas e o tombo do doce de banana, similar ao tradicional tombo da polenta de Venda Nova do Imigrante, na região serrana.
Projetos futuros
Uma das conquistas recentes da cooperativa foi a compra de um terreno em Cachoeirinha, que irá abrigar projetos futuros, já em andamento, como a construção de um Centro de Distribuição de 600 m² em uma área de 90 mil m². A CAFC tem também como projeto futuro a aquisição de tratores para retroescavadeira, com o objetivo de melhorar as estradas e facilitar a mobilidade dos agricultores. Além disso, almeja criar uma fábrica de mariola, possibilitando a fabricação própria do doce por parte da cooperativa, e expandir seus produtos à base de banana, incluindo em seu portfólio produtos como o vinagre e o macarrão.
Também está em discussão uma parceria maior entre a CAFC e o Grupo 7M, formado por agricultoras da região. As duas organizações estudam a possibilidade de, por meio da cooperativa, vender mensalmente cerca de 300 quilos de banana passa produzida por elas em São Paulo, para uma empresa que compra o caminhão fechado do produto. Para isso, as agricultoras estão investindo na melhoria da infraestrutura, como a aquisição de um novo secador.
A história do Grupo 7M se assemelha um pouco com a da cooperativa. Assim como ela surgiu da organização dos trabalhadores por meio de uma entidade, o sindicato, o Grupo 7M nasceu da Associação de Mulheres Trabalhadoras Rurais de Cachoeirinha e Sabão, que existe ainda hoje, com 26 associadas. Como diz o nome, o Grupo 7M contava, inicialmente, com a atuação de sete mulheres. Hoje são três: Vera Lucia Monteiro Barcelos, que está desde o início, e Nilcélia Silva Barbosa e Evanilda Barcelos Vieira. Pelas suas mãos, são produzidos chips de banana, banana passa, farinha de banana e bombom de banana, vendidos na loja da associação, em Cachoeirinha, que abre aos sábados, das 8h às 17h, e aos domingos, das 8h às 13h.
Os trabalhos começaram na gestão do então prefeito Dejair Camata, mas após sua morte, em 2000, em um acidente de carro em Jaguaré, extremo norte do Espírito Santo, não houve mais apoio do governo municipal, o que fez com que as atividades cessassem. Elas retornaram na gestão do ex-prefeito Helder Salomão (PT). Para isso, além do apoio da prefeitura, as mulheres conseguiram crédito por meio do Programa Nacional de Agricultura Familiar (Pronaf) para construir a pequena mas produtiva fábrica, em Cachoeirinha.
As três agricultoras que atuam no Grupo 7M também são cooperadas. Para Vera, a CAFC alavancou a comercialização das bananas. “A maioria dos produtores aqui vendia pra atravessador. Com a cooperativa, eles vendem direto para a CAFC, que entrega para consumidores como os do Rio de Janeiro, São Paulo e por aí fora”, afirma, destacando que outra vantagem de ser cooperado é a obrigatoriedade da formalização do trabalhador rural, já que é preciso obter documentos como a Declaração de Aptidão ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (DAP-Pronaf), que identifica e qualifica as Unidades Familiares de Produção Agrária e suas formas associativas organizadas em pessoas jurídicas. “Lá na frente, talvez o produtor precise do benefício da aposentadoria, um auxílio doença, e ele tem que estar com a documentação certa”, alerta.
‘Cooperativismo é parceria’
Os projetos da CAFC para o futuro englobam também uma parceria com a Cooperativa dos Cafeicultores do Sul do Estado do Espírito Santo (Cafesul), em Muqui, que já começou a ser discutida entre as duas cooperativas. A ideia, dentro da proposta de diversificação dos produtos da cooperativa de Cariacica, é a produção do café orgânico, que, segundo Davi, tem uma procura crescente no mercado. “Acredito que falta até oferta para ele, principalmente para a exportação”, avalia. O café foi escolhido por ser uma cultura já forte na região, inclusive, entre os produtores de banana orgânica.
A parceria, afirma Davi, é no sentido de uma atuação conjunta entre as cooperativas, e não de aprender com a Cafesul para simplesmente aplicar na zona rural de Cariacica. “Cooperativa vem de cooperar, de cooperação. Quanto mais pequenas cooperativas e pequenos agricultores se unirem, mais fortes ficam. Queremos, juntos, buscar novos mercados, novos negócios”, projeta.
A Cafesul foi fundada em 1998 e conta com cerca de 180 cooperados nos municípios de Muqui, Mimoso do Sul, Atílio Vivacqua, Jerônimo Monteiro, Cachoeiro de Itapemirim, Alegre e Anchieta, todos no sul do Espírito Santo. Desses produtores, 66% são pequenos agricultores e 34% são de maior porte, mas com no máximo 30 hectares de produto plantado. “O grande não tem como ser cooperado, até porque ele tem poder de negociação”, diz o presidente da Cafesul, Renato Theodoro.
Quando a Cafesul nasceu, veio ao mundo por meio da união de 20 produtores. Ficou cerca de quatro anos existindo no papel, até que em 2002 houve uma discussão se fechava ou não a cooperativa. O ânimo para continuar com o projeto veio a partir da participação de um grupo de agricultores em um evento sobre café. “Aí começou o trabalho, mas ainda era muito difícil, pois nós somos uma cooperativa pequena. É muito difícil você competir nesse mercado de convencional se você não tem volume para trabalhar. Aí a gente ficava, ‘o que nós vamos fazer para nos diferenciar do mercado?”, recorda. A resposta para essa pergunta foi encontrada em um outro evento do qual os produtores participaram, que foi uma palestra sobre a certificação Fair Trade, em 2006.
“Um alemão veio dar essa palestra. Nós pensamos ‘opa, é o diferencial que estamos buscando, é a nossa tábua de salvação, nós temos que agarrar isso aí’. Fomos buscar a certificação e também trabalhar com cafés especiais, por isso começamos, em 2010, a fazer o concurso de qualidade, que foi para o produtor também buscar um diferencial na qualidade”, diz Renato. O concurso anual de qualidade em café Conilon começou em 2010, com destinação dos melhores lotes para a marca Casario. O concurso específico para as mulheres tem cerca de oito anos, destinado à marca Póde Mulheres, que também é o nome de um grupo de cafeicultoras cooperadas.
A certificação Fair Trade trabalha no tripé da sustentabilidade econômica, ambiental e social. Por isso, o trabalhador tem que atender uma série de condicionantes, como utilização de equipamento de proteção individual por parte do colono ou empregado. Com o colono, inclusive, é preciso ter ao menos um contrato de parceria. No caso dos empregados, devem ser registrados. Outras condicionantes são preservação das nascentes e não ter trabalho escravo nem infantil. Caso sejam atendidas, ganha-se o Prêmio do Comércio Justo, no valor de cerca de R$ 130,00 por saca de café vendida.
“Você tem o preço do café, que já é um preço diferenciado por ser Fair Trade. Agregado a esse preço tem o prêmio”, diz Renato. O valor do prêmio, explica, vai para uma conta específica. Anualmente, a cooperativa faz o Plano de Desenvolvimento do Comércio Justo (PDCJ), com o intuito de planejar as atividades a serem executadas com esse recurso. As propostas de ações são debatidas em assembleia, com participação dos cooperados.
O início da atuação da Cafesul com a produção orgânica tem muito a ver com a afirmação de Davi sobre a grande procura por esse produto, principalmente para exportação. Assim como a ideia de prosseguir com as atividades da cooperativas e a de busca da certificação Fair Trade, a produção orgânica também está ligada à busca por qualificação e troca de experiências, já que a semente foi plantada em participações em feiras internacionais, como as dos Estados Unidos e Europa.
“Em 2019, antes da pandemia, eu fui numa feira em Berlim, na Alemanha, e levei amostras de café para as pessoas. Aí, toda vez que eu ia num estande para mostrar o café, a primeira pergunta que me faziam era: ‘tem orgânico?’. Eu fiquei com aquele negócio na cabeça. Porque todo mundo está perguntando de orgânico?”, recorda. Aliado a isso, há o fato de que a maioria das cooperativas que trabalham com café orgânico cultiva o Arábica, já a Cafesul tinha grande produção de Conilon.
A inquietação e a visão de que o produto da cooperativa tinha um diferencial se transformaram em ação quando Renato reuniu a diretoria, falou da grande procura pelo orgânico e da necessidade de iniciar um projeto que fosse ao encontro dessa demanda. Assim, foi montado um piloto com 10 produtores e houve a contratação de um técnico agrícola e uma parceria com o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) para atender os trabalhadores rurais até chegar o momento de obter a certificação, conquistada em 2023.
Todos foram aprovados na certificação nacional, mas restou alguns para a dos Estados Unidos e União Europeia, que podem ter a aprovação ainda este ano, já que a auditoria está em curso. Os aprovados passaram a exportar para os Estados Unidos e países da Europa, consagrando a cooperativa como a primeira de café conilon do país a receber certificação orgânica para exportar para esses lugares. No caso do continente europeu, seu principal cliente é a Alemanha. A cooperativa também está adentrando na Suíça. Em território norte americano, além dos Estados Unidos, exporta para o Canadá.
O sucesso da empreitada fez com que mais cafeicultores se sentissem motivados a cultivar orgânico. “O produtor é meio São Tomé, né? Tem que ver pra crer. Então, a gente quando quer fazer uma coisa nova aqui, normalmente começa com o piloto justamente por isso. A cooperativa pega aqueles que aceitam mais a mudança tecnológica ou qualquer outra mudança para servirem de exemplo. Aí quando o pessoal começa a ver que o negócio dá certo, que tem o mercado, que tem o produto, que ele é valorizado, adere”, enfatiza Renato.
Hoje a Cafesul tem iniciativas com foco no incentivo à produção orgânica por parte dos cooperados. Uma delas é a disponibilização de um técnico agrícola voltado para esse tipo de cultivo. Uma outra é a busca por insumos, como a compra de torta de mamona, vendida por uma empresa de São Paulo, adquirida para substituir o esterco, pois dá o mesmo efeito e é mais fácil de manusear. “A gente compra esse produto para distribuir aos cooperados. A cooperativa possibilita isso. Se um produtor for sozinho lá em São Paulo buscar uma torta de mamona para aplicar na lavoura dele, ficaria muito caro o frete, talvez ele nem conseguisse trazer. Quando a gente junta o grupo, o técnico vai lá, faz uma especificação, a gente vê o volume, já compra, aí a cooperativa viabiliza isso. Adquire e traz esse produto para eles”, diz.
Este ano a Cafesul inaugurou uma fábrica de bioinsumos para oferecer esse tipo de produto a todos cooperados, não somente os de orgânico. Outra iniciativa nova é o viveiro de mudas, a serem fornecidas para os agricultores. Contudo, Renato aponta como a mais importante ação da cooperativa a possibilidade de ingresso dos produtos da agricultura familiar no mercado.
“O orgânico já existe há muito tempo no Brasil. Mas teve uma época em que a gente entrava e na hora que ia para o mercado se perguntava ‘para quem eu vou vender’? E nisso a cooperativa também ajuda. Uma coisa é eu ir lá vender 10 sacas de café de um produtor, outra é eu ir com um contêiner. Para viabilizar a exportação de café em pequenas quantidades, fica muito caro. Então o que a gente faz? Pega o café de vários produtores, junta para fazer um contêiner, que normalmente são 320 sacas, mas a gente pode mandar um pouco menos, para que viabilize o frete”, detalha.
‘O orgânico é uma tendência’
Na avaliação de Renato Theodoro, após a pandemia da Covid-19, os consumidores tiveram uma mudança de comportamento, que foi a maior procura por alimentos mais saudáveis, daí o aumento do consumo. “Isso é uma tendência. Se ela continuar crescendo, a expectativa é que esse mercado também cresça. Não vai ser tão rápido, porque é uma mudança de cultura, de comportamento, hábito alimentar, que não muda da noite para o dia. Então vai acontecer, mas não com todos produtores”, acredita.
Para ele, a adesão à produção orgânica por parte dos agricultores familiares é mais fácil se comparado aos grandes produtores. “Tem grandes fazendas com uma forma de manejo que, às vezes, é até difícil trabalhar o café todo como orgânico. No caso do produtor pequeno, principalmente, que é o perfil dos nossos produtores, é mais fácil você fazer essa migração do convencional para o orgânico, porque ele tem uma facilidade maior de fazer um manejo desse tipo”.
Para o produtor Luiz Claudio de Souza, a adesão à produção orgânica, com o passar do tempo, será uma obrigatoriedade para todos agricultores, por se tratar de “um caminho sem volta”. “O mercado consumidor está cada vez mais pressionando o setor produtivo para ter uma produção mais sustentável, livre de produtos químicos. A Europa está restringindo muito o produto que seja nocivo. Então, todo café e outros alimentos que chegam lá têm que ser livres ou ter uma quantidade mínima de químicos no grão”, informa.
Luiz Claudio, que conta com a parceria de sua esposa, Neusa Maria da Silva, começou a trabalhar com orgânicos em 2019. Contudo, o desejo de fazer isso começou há 30 anos, por ver a necessidade de uma agricultura mais sustentável, com respeito à natureza, sem utilização de produtos químicos. Entretanto, o sonho esbarrava em questões como a dificuldade de acesso aos insumos. A Cafesul foi uma das responsáveis por torná-lo realidade, ao disponibilizar um técnico agrícola que auxiliou na transição para o orgânico.
Neusa explica que a produção orgânica, por não usar agrotóxicos, beneficia toda a sociedade. Ela exemplifica com o que acontece nos tempos chuvosos, quando a água pluvial acaba carregando os defensivos agrícolas contidos no solo para os rios. A produção orgânica de sua propriedade, afirma, contribui para que isso não aconteça com o rio que passa ali. “Nós aqui temos muitos vizinhos que dependem dessa água nossa. Depende para beber, para cozinhar”, conta Neusa, que passou a se dedicar com mais força à produção do café depois que se aposentou como agente comunitária de saúde.
A agricultora costuma dizer que agora cuida da saúde das pessoas através da preservação ambiental proporcionada pelo cultivo orgânico. “Foi excelente a experiência de trabalho na saúde e agora aliar ao meio ambiente. Quando o agente de saúde vai na casa de um paciente, nossa, a mesinha dele, da cabeceira da cama, tem uns 15, 20 remédios. Às vezes, é até desnecessário, por falta de uma alimentação mais adequada, uma água boa para beber. Eu ia em casas que você pedia uma água para tomar, aquela água amarelada, vinda de várias propriedades, com o uso de agrotóxico. Então, a pessoa se enche de medicamento para combater aquele mal, sabendo que às vezes é lá dentro da nossa casa que a gente está pegando esse problema”, avalia.
Neusa e Luiz Claudio preparam o futuro de sua propriedade e da produção cafeeira. Isso acontece por meio da sucessão familiar. Luiz Claudio, que é filho e neto de agricultores, vê os filhos Tássio, Tercio e Talles seguirem o mesmo caminho. Os três são técnicos agrícolas. Deles, os que são mais envolvidos com a produção são os dois primeiros, já que Talles é professor de Química, afirma Tassio, que é tecnólogo em Cafeicultura, mestre em Agroecologia e servidor do Incaper.
Tassio aponta que tem um trabalho contínuo com os pais, por meio de ações como o processamento dos lotes para produção de melhores bebidas. Para ele, a atuação da cooperativa é essencial para a concretização da sucessão familiar. “O cooperativismo nos fez ver oportunidades, permitiu alcançar certificações, abriu a possibilidade de venda do café por preço justo, criou novos e melhores negócios”, comemora. Ao que tudo indica, uma nova geração de apaixonados por cafeicultura já está surgindo entre os netos de Luiz Claudio e Neusa por meio da pequena Camila, de apenas quatro anos, filha de Tassio. “Ela já vivencia a colheita do café, já gosta de dar uma bicadinha para degustar produtos diferentes, de diversas regiões”, festeja.
Luiz Claudio afirma que grande parte de sua geração não trilhou o mesmo caminho de seus filhos, pois muitos migraram para a cidade. Ele atribui a mudança de comportamento dos jovens de hoje à abertura de oportunidades trazidas pelo orgânico. “Ter um trabalho diferenciado, como o do orgânico, começa a motivar a juventude. Tem um apelo maior para ela voltar ou permanecer no campo. O orgânico começa a agregar valor. E se você agregou valor, tem mais renda”, ressalta. A produção orgânica, acrescenta, auxilia na sucessão familiar também por manter o solo saudável para o trabalho das próximas gerações.
Além disso, tem possibilitado sua atuação em outro segmento econômico: o turismo. Como sua cidade, Muqui, faz parte da Rota Morubia, de agroturismo, ele tem investido no turismo de experiência, recebendo em sua propriedade turistas e escolas que querem conhecer e saber mais sobre o cultivo do orgânico. Para isso, fez consultoria com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) para se capacitar em aspectos como marketing e precificação. A procura pelo turismo de experiência, acredita, vai se tornar maior após o fim da obra do Programa Caminhos do Campo, do Governo do Estado, que asfalta estradas na região, melhorando a mobilidade.
Protagonismo feminino
A Cafesul tem duas marcas de café, que são Casario e Póde Mulheres. Este último, como diz o nome, é produzido por trabalhadoras rurais de um grupo com esse mesmo nome e que conta com mais de 30 envolvidas, entre elas, Neusa Maria, que acredita que o grupo é uma forma de incentivar a participação feminina na cafeicultura. Pelo relato da agricultura Iria de Fátima Guioto, Neusa tem razão. Após uma vida inteira dedicada ao magistério, ao se aposentar, Iria queria buscar uma nova atividade para exercer. Resolveu, então, ir nas raízes de sua família, já que seus pais eram agricultores, e na infância e juventude, os auxiliava na roça.
Um dos grandes incentivos para essa empreitada foi o Póde Mulheres. “Comecei a participar e gostei muito. Fiquei muito encantada com o trabalho que elas já faziam, por serem mulheres tão independentes e fazendo com tanto interesse, com boa vontade. Me encantei com aquele grupo”, exalta. Ela considera que o Póde Mulheres vai ao encontro da mulher que quer “ocupar seu espaço e mostrar que é capaz tanto quanto o homem”.
A aproximação de Iria com a Cafesul se deu através de seu marido, Antônio Renato, cooperado desde o surgimento da cooperativa. A possibilidade do plantio do orgânico, recorda Iria, surgiu em um curso com o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar) oferecido pela Cafesul. A agricultora diz que já tinha paixão por esse tipo de produção devido aos benefícios à saúde. Após o curso, foi disponibilizado um técnico agrícola para dar o pontapé inicial na produção orgânica. Iria divide sua paixão pelo orgânico com Antônio. “Sempre gostei de planta, árvore, preservação. No orgânico, a terra vai se recompondo, com o agrotóxico ela se degrada e chega um momento que não planta mais. Vai sempre depender do agrotóxico e o uso vai duplicar, pois a terra acaba exigindo cada vez mais”, compara Antônio.
O agricultor destaca, ainda, que o agrotóxico pode causar a a redução, ou até mesmo a extinção de algumas espécies de animais, além de possibilitar o aumento de pragas no plantio. “O Jacu é um pássaro que se alimenta de pragas que aparecem no cafezal, como a broca. Aí o que as pessoas fazem? Pulverizam com o agrotóxico para matar a broca, sendo que o pássaro faz isso. E o agrotóxico acaba matando também o animal. Vários animais não aparecem mais aqui na região, como o coleiro e a rolinha”, lamenta.
Anuário do Cooperativismo Capixaba
Tanto a CAFC quanto a Cafesul são filiadas ao Sistema OCB/ES, que tem como propósito defender e representar o cooperativismo no Espírito Santo. No último dia 4 de outubro, a Organização das Cooperativas Brasileiras no Espírito Santo (OCB/ES) lançou o Anuário do Cooperativismo Capixaba 2024. O levantamento mostra que ano de 2023 terminou com 112 cooperativas registradas, que juntas totalizam 832 mil cooperados, empregam 11,8 mil pessoas, e são responsáveis por um faturamento anual de R$ 14,8 bilhões, o que corresponde a 6,4% do Produto Interno Bruto (PIB) nominal do Estado.
O anuário divide os ramos do cooperativismo capixaba em consumo; crédito; infraestrutura; saúde; trabalho, produção de bens e serviços; transporte e agropecuário. Este último é voltado para cooperativas que prestam serviços relacionados às atividades agropecuária, extrativista, agroindustrial, aquícola ou pesqueira, cujos cooperados detêm, a qualquer título, os meios de produção. Portanto, é nesse segmento que se encaixam a CAFC e a Cafesul. O ramo agropecuário, conforme consta no Anuário, terminou o ano passado com 23 cooperativas, 40,7 mil cooperados; 2,7 mil funcionários; e movimentação econômica de R$ 5,8 bilhões.
Considerando as Pessoas Físicas (PFs), o quadro social das cooperativas agropecuárias é formado majoritariamente por homens, que correspondem a 86,7%. As mulheres totalizam 12,7%. Entre os cooperados, a disparidade se mantém, pois 87,2% são homens e 12,8% são mulheres. A baixa participação do público feminino também se repete nos conselhos de Administração e Fiscal. No primeiro, o levantamento mostra que 89% dos que atuam nesse espaço são homens e 11% mulheres. No segundo, os homens são 85,1% e as mulheres 14,9%. Além disso, nas 23 cooperativas do ramo agropecuário registradas na OCB/ES, 68,9% dos que ocupam cargo de direção e gerência são homens acima de 30 anos; 10,6% são homens com até 29 anos; 17,7% são mulheres com mais de 30; e 2,8% mulheres com até 29.
Contudo, as cooperativas já se movimentam no sentido de mudar esse cenário. A Cafesul, por exemplo, conta em seu Conselho Fiscal com a participação igualitária entre homens e mulheres, ambos com 50%. Além do Pó de Mulheres, também procura realizar outras iniciativas de valorização e apoio ao trabalho das agricultoras. Recentemente, informa Renato, a cooperativa aprovou no Fundo Social de Apoio à Agricultura Familiar (Funsaf) um projeto com foco nas trabalhadoras rurais que permitiu a aquisição de 30 kits contendo descascador, estufa e medidor de umidade.
Assim como as mulheres, a participação da juventude precisa avançar, pois entre os cooperados a minoria é de pessoas até 29 anos. Entre as mulheres cooperadas, apenas 6,6% estão nessa faixa etária, na qual o número de homens, 4,5%, é menor. A faixa etária com maior número de cooperados é entre 30 e 59 anos. Nela, a participação das mulheres cooperadas é de 65,2%. A de homens é 61,7%. Por fim, em meio aos maiores de 60 anos, a participação masculina é de 33,8% e a feminina de 28,2%. A Cafesul, segundo Renato Theodoro, busca incentivar a participação dos jovens, principalmente no Conselho Fiscal, para que, futuramente, alcancem outros postos dentro da cooperativa.
“Estar no Conselho Fiscal é uma perspectiva para depois ir para o Conselho Administrativo, presidência e outros cargos. Passar pelo Conselho Fiscal é importante para conhecer a parte funcional, os números. Assim, quando chegar no Administrativo, onde se pensa a estratégia, já vai com esse conhecimento do operacional”, afirma.
Agricultura familiar
O Anuário também traz dados específicos sobre a agricultura familiar. O estudo aponta que por meio de recursos do Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação (FNDE), as cooperativas desse segmento movimentaram mais de R$ 7,6 milhões em 2023. A afirmação é feita com base nos dados divulgados pela Secretaria de Estado da Educação (Sedu). Consta, ainda, que movimentaram R$ 11,9 milhões por meio do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e do Pnae, fornecendo produtos para municípios do Espírito Santo, outros estados do Sudeste e demais instituições contempladas pelo programa.
Os produtos mais comercializados por meio do PAA e do PNAE, em toneladas, foram frutas e seus derivados, com 3,4 mil, seguidos de tubérculos e derivados (930), peixes e derivados (143,3), legumes (114,4), verduras (15), ovos (6,5), mel (5,8) e cereais e derivados (1,5). No entanto, apesar de não ocupar o primeiro lugar no ranking dos produtos mais comercializados, peixes e seus derivados lideram em valor comercializado, que foi de R$ 7,1 milhões. Os produtos menos comercializados no PAA e PNAE são os ovos, com R$ 59,6 mil.
O valor total comercializado nos programas de aquisição alimentar governamental em outros estados por meio do PAA e do PNAE, em 2023, foi superior a R$ 10 milhões. Além disso, os produtos das cooperativas capixabas do ramo agropecuário atenderam a 331 escolas públicas, beneficiando diretamente mais de 100 mil alunos. As vendas para além do PAA e do PNAE somaram um total de R$ 797,3 milhões, a maior parte no mercado interno.
Fonte: Século Diário / Fotos: Leonardo Sá