No coração do agreste paraibano, um grande galpão em ruínas é o monumento à memória de um tempo em que algodão era sinônimo de esperança para incontáveis famílias de pequenos agricultores de Ingá (PB).
Erguido na década de 1930, o edifício pertenceu à multinacional Anderson Clayton e foi equipado com máquinas muito modernas para a época.
O prédio era o resultado maior de uma política do governo estadual que pretendia transformar o município, localizado entre a capital João Pessoa e a cidade de Campina Grande, em um exemplo de progresso.
Afinal, o algodoeiro tende a prosperar em climas áridos e lá havia muita terra disponível. A ideia teve êxito durante quase duas décadas e a localidade chegou a se tornar na segunda maior produtora de algodão da Paraíba.
No entanto, quando a empresa americana decidiu deixar o lugar nos anos 1950 por conta da desvalorização do “ouro branco” em relação a fios sintéticos, a pequena cidade de 18 mil habitantes era completamente dependente da companhia e começou a atravessar um período de lenta decadência.
A situação seguiu por três décadas até 1983, quando veio o golpe fatal: o lugar foi o primeiro do Brasil a registrar a presença de uma praga extremamente nociva que rapidamente destruiu as colheitas de algodão. Foi o fim da cultura algodoeira de Ingá e das cidades vizinhas, o que inaugurou uma era de acentuada miséria entre a população.
Agricultores ingaenses têm apenas más palavras para definir o bicudo (Anthonomus grandis): “maldito”, “fracasso” e “tragédia” são algumas delas. O inseto se multiplica de maneira exponencial e preda as plantações quando a colheita já está próxima. Até sua chegada, o algodão era visto como a “poupança de fim de ano” dos trabalhadores rurais e costumava render um lucro considerável para quem o plantava.
Traumatizados pela praga, os lavradores apresentaram muita resistência quando prefeitura, governo do estado e a iniciativa privada decidiram incentivar o retorno do cultivo do produto às terras de Ingá em 2021.
“Fomos chamados de malucos e de bestas, ninguém acreditava na gente. Com o nosso avanço de um ano para outro, eles viram que o algodão é o caminho mais próspero para a vida dos agricultores.”, diz Severino Vicente da Silva, conhecido como Biu, da cooperativa de produtores de algodão de Ingá (Itacoop)
“Sou do tempo em que algodão era o meio de vida do povo. Em 1983, o bicudo veio e levou tudo que a gente tinha, nossa dignidade, nossos filhos. Ficamos só com milho e feijão. Ficamos na pior”, declarou Biu, agricultor.
Com 70 anos de vida e pelo menos 60 de lavoura, Biu foi um dos que apostaram no algodão desde o início de sua retomada.
Com olhar emocionado, conta que viu seus filhos irem embora de Ingá com a crise do bicudo. Depois de muitos anos de ceias natalinas sem presentes para filhos e netos, Biu se anima ao dizer que voltou a conseguir comprar agrados para a família com o lucro obtido através da produção do ano passado.
O sucesso de Biu e seus poucos companheiros produtores atraiu a atenção de muitos, e a área total de plantio saltou de 5 para 46 hectares em apenas um ano. Hoje são 38 agricultores envolvidos.
Agricultores na passarela
De acordo com a cooperativa, o algodão orgânico cultivado pela agricultura familiar e pelas comunidades quilombolas alcança até 1200 quilos por hectare plantado. Através do Programa Algodão Orgânico Paraíba, o governo mantém a garantia de mercado e oferece certificação e orientação técnica aos interessados. O manejo sustentável e sem o uso de agrotóxico faz com que o resultado se diferencie daquele obtido no Centro-Oeste pelo agronegócio.
Ao contrário da iniciativa dos anos 1930, voltada para a grande indústria, o projeto foca em fortalecer os pequenos agricultores com o ensino de boas práticas e pretende eliminar os intermediários.
No antigo galpão da Anderson Clayton, desapropriado pelo governo, operários preparam a instalação de uma descaroçadeira moderna para atender todos que desejarem beneficiar sua produção para vendê-la a preços maiores. A formação de cooperativas também é incentivada. Além da Itacoop, a Cooveste reúne costureiras de Ingá que haviam sido demitidas com o fechamento de uma fábrica e hoje produzem peças próprias com o algodão orgânico local.
Também integrante da Itacoop, Antonio Barros, o Calu, está prestes a completar 80 anos. Pai de 11 filhos, ele estava presente com a família no “Dia de Campo” promovido pela prefeitura em setembro. Ele era um dos convidados especiais de um desfile de moda organizado pela Associação Brasileira da Indústria, Comércio, Serviços e Educação para Moda Sustentável (Abrimos) apenas com produtos orgânicos da região.
A passarela foi montada em meio a um campo de algodão num fim de tarde cinematográfico. Depois dos modelos que apresentaram peças de refinado nível técnico, foi a vez dos agricultores caminharem por ela. Os aplausos empolgados foram a senha para que o velho agricultor fosse às lágrimas.
“Ver que tudo isso foi produzido por nós é motivo de muita felicidade”, diz Calu ao descer da passarela. “Eu comecei na roça com 4 anos ajudando a família para sobreviver. Minha vida é o algodão. Hoje temos uma cooperativa que está começando e graças da Deus temos recebido bons incentivos para seguirmos fortes. Está crescendo e dando certo.”
Ano passado, o primeiro “Dia de Campo” recebeu a visita de uma delegação da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO/ONU), que demonstrou interesse em conhecer as bases do projeto e sua viabilidade. O segundo, neste ano, recebeu representantes do Governo da Paraíba, SEBRAE, SENAI e também empresários de companhias do setor, como Natural Cotton Collor (PB), Santa Luzia (PB), Dalila Têxtil (SC) e Cataguases (MG). O prefeito Robério Burity (PSB) enxerga no projeto uma maneira de ampliar as atividades econômicas da cidade.
“Pessoas que estavam desempregadas hoje são cooperativadas e foram empoderadas. Estamos trabalhando para acabar com a tradição de que a prefeitura seja o maior empregador do município. É por isso que acredito em associação e cooperação. Se não houvesse união entre o poder público, o poder privado e os trabalhadores, esse programa não acontecia. Assim, a economia local começa a girar e a população se torna independente.”
Fonte: UOL
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