Todos os dias, com sol ou chuva, dona Fátima da Silva, de 60 anos, puxa seu carrinho para catar material reciclável nas lixeiras das ruas de Aparecida de Goiânia. Ela coleta garrafas plásticas descartadas pelos consumidores. “São mais leves para eu carregar”, afirma. A rotina é sair de casa muito cedo, pois precisa fazer a rota antes que os caminhões da prefeitura levem todo o lixo. Atrasos significam ficar sem o produto para vender e sem levar dinheiro para casa.
Assim como dona Fátima, milhares de catadores pelo Brasil disputam espaços entre carros para conseguir recolher plásticos, papelões, alumínio, vidros. Até sem saber, o trabalho deles contribui com o meio ambiente por meio daquilo se conhece como logística reversa. No entanto, os valores que recebem pelo trabalho, que envolve riscos, são baixos. Ganham-se centavos por quilos de produtos coletados. Essa realidade pode mudar um pouco em Goiás, por meio de recurso extra que a cadeia produtiva terá de pagar pela remoção e correta destinação do lixo produzido a partir das embalagens disponibilizadas no mercado junto com seus produtos.
Em abril deste ano, o governo de Goiás publicou o decreto estadual nº 10.255, com metas mínimas obrigatórias de 22% de remoção de todo tipo de embalagens colocadas no mercado por fabricantes, importadores, distribuidores de produtos e comerciantes. Para isso, a prioridade será a compra de créditos, por meio de nota fiscal, de materiais recicláveis diretamente das cooperativas de catadores. Assim, as cooperativas receberão um recurso a mais, podendo repassar um pouco para seus operadores, como o caso da catadora d. Fátima. Entretanto, falta definir quanto as empresas irão pagar pelo lixo que produzem e são responsáveis por ele. A Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad) informa que o próprio mercado irá regular essa precificação.
Embora a medida obrigatória de logística reversa esteja em vigor há cerca de 30 dias em Goiás, provocando muitas dúvidas tanto para o empresariado quanto para os diretores de cooperativas, a legislação vigora ao menos por dois anos (lei nº 20.725). “Desde 2020 tem essa lei, mas dificilmente as empresas cumpriram. Poucas empresas fazem a logística reversa em Goiás. Então o governo do Estado soltou esse decreto agora, para responsabilizar todas as empresas na geração de residuos”, acentua o professor da Universidade Federal de Goiás (UFG), Rafael Saddi. Ele esclarece que a regulamentação irá obrigar que as empresas sejam responsáveis pela reciclagem e a redução do impacto ambiental causado pelo descarte inadequado de embalagens.
Mas como a partir do decreto as empresas entenderão que são atores importantes para a redução do lixo que ajudam a produzir e poluir o meio ambiente? “Uma das coisas que eles fizeram que vai obrigar as empresas a fazerem a logística reversa é o fato de que se ela não cumprir o decreto, ela não consegue a autorização da licença ambiental. Então isso vai passar a ser um critério para a atualização da licença ambiental e comprovar que a logística reversa está sendo feita, de que o material produzido está tendo a correta destinação”, pontua Saddi.
Agora, a medida está sendo vista como possível de ser aplicada, embora haja bastante dúvida inclusive no segmento empresárial. “No caso da logística reversa, a gente ainda está aprendendo. O assunto é muito complicado”, sublinha o empresário Lino Alves. Uma das entidades envolvidas na elaboração do decreto foi a Federação das Indústrias do Estado de Goiás (FIEG). O vice-presidente da entidade Flávio Rassi participou das discussões e salienta que o índice de remoção de materiais é variável. “Por exemplo, o piso é 22%, o material com mínimo possível é de 22%. Mas existem casos que temos índices de 60%, então não teria sentido colocar 22%, se já tem um índice de destinação correta de retorno de 60%. Nesses casos, os índices ficaram em torno de 60%”, destaca. “Nem todas as embalagens se conseguem recolher, mas se consegue às vezes dar um destino correto. Vamos dar como exemplo, algumas serão incineradas, nem todas serão passíveis de reciclagem, mas dando o destino correto e que tenha menos impacto no meio ambiente”, acrescenta.
O Ministério Público de Goiás (MPGO) também integrou o grupo de trabalho para a formatação do documento para obrigar a logística reversa. O promotor de Justiça Juliano Araújo esclarece que há o princípio da responsabilidade compartilhada do ciclo de “vida do produto”, nesse caso das embalagens. “Parece algo complicado, mas essa responsabilidade compartilhada quer dizer o quê? Todos que de alguma forma são responsáveis pelo produto, inclusive o consumidor final, são obrigados a dar a destinação final do produto. Hoje, estamos acostumados a pensar que tudo é obrigação do município, para fazer a coleta e a gestão dos resíduos. Mas na realidade, quando a gente compra algo, compramos o produto e não a embalagem”, acentua.
Entenda o mecanismo
Os créditos de reciclagem serão gerados a partir da emissão de nota fiscal de venda dos materiais coletados e levados para as cooperativas ou depósitos. Atualmente, esse serviço é feito exclusivamente pelas cooperativas de reciclagem, que vendem esse material. A partir da venda, serão gerados os créditos (notas fiscais) que estarão disponíveis para aquisição das empresas. Juliano Araújo explica que a operação de compra de créditos poderá ser feita por entidade gestora – figura criada pelo decreto. “Como se fossem despachantes das empresas. Elas vão descobrir no mercado, nas cooperativas, onde tem nota para poder comprar esses créditos, mediante emissão desses créditos e efetuando o pagamento por parte das empresas”, destaca. No entanto, isso não impede que as próprias empresas comprem diretamente os créditos de resíduos, sendo como propriedade proveniente das cooperativas de reciclagem.
Conjuntamente à operação irá funcionar o sistema de auditagem, que é o verificador de resultados, vinculado ao Ministério do Meio Ambiente. “Esse verificador de resultado vai primeiro checar se essas notas fiscais são verdadeiras, se essas notas fiscais não são colidentes e, por fim, vai verificar se há essa rastreabilidade”, assegura Juliano Araújo. Ele acrescenta que esse é um instrumento previsto em outros países, que será adotado em Goiás. “Então a ideia foi essa de ter esse mecanismo aqui no Estado”, compara. Cabe ressaltar, que os sistemas de logística reversa são autodeclaratórios e serão protocolados na SEMAD.
De acordo com ele, a ideia foi reforçar que o Estado proporcione igualdade e competitividade no setor como um todo. “Porque as empresas goianas, que vendem para outros Estados, elas já estão pagando pela logística reversa para outros Estados. E aqui não estavam pagando nada. E concorrem com empresas de fora que vendem produtos aqui e não gastam nada aqui. Então a ideia é justamente a de que o resíduo tem valor econômico. É agregador de renda, vai fazer com que esse o material máximo, que for reciclável, retorne sempre à cadeira reprodutiva, fomentando a reciclagem”, afirma.
Para Saddi, a implantação via Estado da logística reversa trará muitas contribuições para a sociedade, especificamente para as cooperativas de reciclagem. Dentre os benefícios, está a diminuição de lixo que vai para aterros sanitários e bueiros. Além disso, há a questão social, uma vez que a prioridade é que as empresas irão buscar os créditos de resíduos dos seus materiais colocados no mercado diretamente nas cooperativas de catadores. “A empresa pode comprar notas fiscais, ela tem que comprovar que os materiais recicláveis que produziu, retornarão corretamente para a reciclagem. Ela pode pagar um valor para as cooperativas que já estão coletando esse material. Então a cooperativa passa a ter uma renda a mais. Além de coletar e vender o material reciclável, que é um valor muito baixo, ela pode ainda ter um valor remunerado dessas empresas que vão utilizar as notas fiscais da cooperativa para comprovar que ela está incentivando a reciclagem desse material que ela joga na rua”, aponta.
A regulamentação da logística reversa por cada Estado se faz necessária, porque as metas da União são nacionais. Isto é, quando as empresas são obrigadas a remover 22% do que disponibilizou no mercado, isso seria cumprido facilmente no Estado de São Paulo. “Não é justo porque todas as embalagens estão no país todo”, constata Araújo. Nesse contexto, será fundamental o controle dessas operações. O promotor de Justiça relaciona a comprovação dos créditos, por meio de notas fiscais, com o imposto de renda entregue anualmente. “Assim também, a empresa irá declarar o que ela colocou no mercado naquele ano. No ano seguinte ela terá que comprovar que custeou, mediante a emissão dos créditos de reciclagens de que ela bancou a remoção de embalagens, que foram retiradas do mercado”, frisa.
A secretária de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, Andréa Vulcanis, explica que o governo estadual irá assumir um papel de fiscalizador. “A nossa tarefa será de receber os relatórios das empresas gestoras e certificar que a indústria está cumprindo o que determina a lei”, enfatiza. Para tanto, o decreto criou o Certificado de Crédito de Reciclagem (ReciclaGoiás), como forma de incentivar a cadeia de reciclagem em Goiás. No entanto, por outro lado, Vulcanis reforça que o descumprimento da obrigação de logística reversa será tipificado como crime ambiental.
Fortalecimento das cooperativas
Dulce Helena do Vale, da Cooper Rama – cooperativa responsável pela triagem e separação de resíduos sólidos destinados à reciclagem, acredita que será algo bom para o segmento, apesar de haver muitas dúvidas sobre o funcionamento na prática. “Eu diria que isso chegou tarde. Mas chegou. Porque a logística reversa vem para responsabilizar cada um na sua atribuição na cadeia produtiva”, entende. Ela chega a projetar de que maneira a sua cooperativa pode ser beneficiada. “Se a gente vende 10 toneladas de plástico, o pet, a gente vai receber um valor, um exemplo, R$ 0,80 por tonelada, terá aquele valor agregado para as cooperativas”, calcula. A cooperada vê a medida como uma nova reeducação para todo o sistema produtivo. “As indústrias ainda estão se esquivando, não querendo ter essa responsabilidade. Mas no caso dos catadores é muito bom. É satisfatório. A gente torce que isso aconteça e aumente sim, os valores para os cooperados e beneficie o meio ambiente”, sinaliza.
“Para as cooperativas, para os catadores, que conseguem a emissão de nota fiscal, que estão organizados. Esse pessoal vai conseguir ter esses créditos de logísticas reversas ou de massa,” destaca a cooperada. É que estar com a documentação legalmente organizada será um dos critérios para as cooperativas poderem participar da logística reversa. “A dificuldade que as cooperativas vão enfrentar porém é muito grande porque para ela participar tem algumas exigências de documentos, que a maioria das cooperativas não têm condições de terem ainda. Por exemplo, grande parte das cooperativas de Goiás, não possuem licenças ambientais de funcionamento, porque elas precisam de uma área própria para construir um galpão adequado, conjunto de coisas que as cooperativas, sem apoio nenhum dos municípios não tiveram”, lamentou o professor Saddi. De acordo com ele, muitas cooperativas pagam alugueis em galpão em áreas residenciais ou de reservas ambientais.
Dessa maneira, surgem as primeiras dificuldades que são das cooperativas e cooperados não terem o acesso ao que tem de direito. “Eles precisam atender um conjunto de requisitos burocráticos, que infelizmente deixa de fora a maior parte da população marginalizado que não tem essa documentação”, acentua Saddi. Nesses casos, os coletadores são excluídos por outros motivos, pela própria burocracia estatal. Uma vez que exige um conjunto de documentos equiparando as cooperativas, que são organizações de trabalhadores, de certa maneira marginalizados, como sendo organizações empresariais. “As exigências das cooperativas são quase iguais às exigidas das empresas. Isso fica muito difícil para as cooperativas. Eu acredito que é importante a medida, mas é preciso que haja incentivo para facilitar que as cooperativas consigam se estruturar e acessar os direitos que hoje alguns decretos e leis garantem, mas dificultam”, enfatiza.
Nesse sentido, Nair Vieira, da Cooprec, tem a expectativa que a medida irá melhorar um pouco para toda a categoria. “Ela não vai, por exemplo, resolver a vida dos catadores, mas vai melhorar”, confia. Ela ressalta que todas as iniciativas que incluam o segmento beneficiam os trabalhadores. Atualmente, a cooperativa dela tem parceria com a Companhia de Urbanização de Goiânia (Comurg), que coleta todo tipo de material e repassa para eles. “Se têm pets, garrafinhas, a gente vai pegar do mesmo jeito, e a gente vai trabalhar em cima disso. Têm muitos materiais que não tem valor comercial. Alguns têm valor de comércio de R$ 0,05”, revela. Nair disse que pela contabilidade que fez 70% de todo material comercializado está na faixa de preço de menos de R$ 0,20. “Esses dias eu estava fazendo umas contas, nós ficamos com 30% do material que é vendável para sustentar a cooperativa, por isso que hoje as cooperativas estão com muitos problemas financeiros, porque o material está muito baixo, e as contas não baixam. Por exemplo, o petróleo continua no valor real e nosso produto está cada dia em baixa. Então, a logística reversa vai ajudar muito os catadores”, prevê.
A regulamentação via decreto executivo traz esperança para os catadores e para os defensores do meio ambiente. Espera-se que todos os envolvidos com essa nova política ambiental e econômica no País possam unir forças para a implantação desse reforço para a reciclagem e correta destinação de resíduos. Acima de tudo que as grandes empresas e o poder público auxiliem as cooperativas, o elo mais fraco nesta cadeia de coletas e manuseio de materiais, a se organizarem administrativamente para a emissão de créditos de resíduos, obtendo mais recursos para o aprimoramento dos serviços e remunerar um pouco a mais os seus operadores, como a catadora de pets d. Fátima.
Fonte: Jornal Opção
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