Os últimos anos deram ao ser humano um novo direcionamento, anunciado há décadas, mas que se materializou apenas em tempos recentes. De uma hora para outra, conceitos como Era do Caos, Inteligência Artificial, ChatGPT entre outros, tomaram para si os holofotes, causando curiosidade. Ao mesmo tempo, velhas pautas ganharam ainda mais importância, e nunca a responsabilidade social e ambiental estiveram tão em alta.
Diante deste cenário, as maiores perguntas que pairam sobre a mente humana são: o que vem a seguir? Quais tendências realmente irão definir os próximos? Quais os impactos para movimentos como o cooperativismo?
Para tentar desvendar as inúmeras respostas, a MundoCoop conversou com Letícia Setembro, futurista, CEO & Founder da Seek Futures; e Paula Abbas, Futurologista e Fundadora da ThinkRoom. Juntas, elas falam sobre as recentes mudanças no mercado, as principais transformações políticas e sociais pelo mundo e ainda, nos convidam ao desenvolvimento de um novo olhar para o passado, presente e futuro.
DISCUSSÕES PELO MUNDO
Muito do que conhecíamos ficou para trás e as coisas estão evoluindo muito rápido. Mas, afinal, o que é considerado inovação hoje?
LETICIA SETEMBRO:
Inovação continua sempre tendo que ser algo que vai ser útil e que vai resolver uma grande questão. Porém, o que acontece agora é que vivemos um momento em que a velocidade das inovações está muito rápida e nós, como sociedade, não estamos tendo tempo de fazer o download disso tudo.
Durante o South by Southwest 2023, muitos futuristas estiveram reunidos e eu, particularmente, gosto de salientar a Amy Webb, que trouxe para esse encontro um recorte com mais 666 tendências organizadas em 14 grupos, uma coisa completamente insana! E o que ela fala é que não estamos preparados para isso, porém o futurismo vem para ajudar a organizar um planejamento estratégico que faça mais sentido.
Entre os highlights que ela trouxe, podemos destacar a agricultura. O que está acontecendo de inovação na agricultura? Qual a maior urgência a curto prazo? Com certeza, a crise climática. As questões a respeito disso vão destacar as tecnologias verdes, além dos robôs, drones e a bioengineering!
“Espera-se que vá ter muita evolução e que, na era que estamos vivendo, a revolução seja da IA Generativa” – Leticia Setembro
Em exemplo prático, em uma segunda onda de impacto para a agricultura, ela comenta sobre a IA Generativa, a do chat GPT. Toda essa inteligência artificial vai explodir e o uso dela vai ser totalmente fragmentado para solucionar ‘n’ coisas.
As tecnologias de inteligência VR, IR e mídias sintéticas também vão tomar rumos mais fortalecidos. O VR, por exemplo, é uma ferramenta atualmente com muita exploração e desenvolvimento, mas ainda não está pronta. Em uma terceira onda, curiosamente para a agricultura, Amy fala da Web3 e do Metaverso!
PAULA ABBAS:
De tudo isso, existe um ponto que acho muito importante. A tecnologia impulsiona muito e tem funcionado, mas o maior desafio é: como adaptamos o papel humano dentro disso tudo?
As tecnologias estão se desenvolvendo tão rápido que existe uma parcela enorme da população que não dá conta. Como vai ser o uso da inteligência artificial generativa e o chat GPT nas escolas, por exemplo? Vem uma coisa nova e dá medo. Mas não adianta bloquear! Temos que pensar em como fazer essa adaptação e quais são as possibilidades.
Quanto mais a tecnologia evolui, mais rápido a desigualdade também aumenta. Logo iremos ver no mercado os “sem-função”, que são pessoas que não acompanharam essa evolução. Muito se fala em tecnologia, mas pouco se fala nessa adaptação do humano à tecnologia.
BRASIL EM FOCO
Como as grandes tendências globais impactam a realidade brasileira em 2023?
PAULA ABBAS:
Considerando o contexto do mundo e das relações que estão se estabelecendo, muito apoiadas no funcionamento das redes sociais e no enviesamento que o algoritmo causa, a tendência do cenário político mundial é o aumento das polarizações. E no Brasil isso é muito forte, muito visível e vai continuar.
Quais são as questões além dessa que vão impactar o Brasil, a América Latina e o mundo? Emergências e catástrofes climáticas. O Brasil, com esse seu papel de produtor de alimento para o mundo, à mercê de todas essas catástrofes e oscilações extremas.
Agora, uma coisa legal sobre o novo cenário político do Brasil é esse olhar para comunidades ancestrais que trazem tecnologia, como, por exemplo, a relação com as comunidades indígenas, o foco na importância da Amazônia e do Brasil na conservação da biodiversidade. Outro ponto muito interessante no Brasil é a inovação que acontece dentro das favelas e das comunidades. As soluções incríveis que surgem neste contexto merecem destaque e muitos cases estão aparecendo.
Temos algumas projeções que impactam bastante o desenvolvimento da América Latina, como saber que os preços dos alimentos vão dobrar nos próximos anos. Temos também que olhar para a questão das migrações humanas e da mão de obra. Vamos ter mão de obra? De onde que ela virá?
LETICIA SETEMBRO:
Dentro desse cenário, quando vamos fazer o recorte para o Brasil dá para achar oportunidades também. Temos um potencial enorme de trabalhar com energias renováveis e limpas e temos uma disponibilidade maior do que muitos outros lugares. Existem várias questões aqui que podem ser alavancadas e que vão de encontro com as tendências que resolvem grandes problemas sociais e mundiais.
LIDERANÇA DO FUTURO
Ainda falando de futuro, uma outra questão tem crescido. Como engajar verdadeiramente as pessoas da sua empresa e cooperativa? Existe um segredo, afinal?
LETICIA SETEMBRO:
Não tem segredo. A questão de engajamento de talentos é um problema, inclusive pelo modelo de trabalho onde temos uma tendência de o trabalhador ser livre, ser um freework, e também empreendedor, se tornando mais autônomo.
Tem um futurista que eu gosto chamado Jacob Morgan, que traz os desafios do líder do futuro e as skills que esse líder tem que assumir.
Segundo ele, o líder terá que estar sempre “futurizando” o local de trabalho, ou seja, olhando para a automação, para o aprender a tecnologia e para a parte técnica. Mas, ao mesmo tempo, terá que ter uma via de humanização desse local de trabalho. As duas coisas precisam caminhar juntas.
E o que isso significa? Que além dele acelerar o desenvolvimento tecnológico, ele tem que lembrar que está lidando com seres humanos. O líder tem que olhar para pessoas que buscam pertencimento, reconhecimento, acolhimento e acima de tudo, buscam propósito.
Os líderes, que vão lidar em um futuro muito diverso e com dificuldade de atração de talentos, terão que desenvolver novas habilidades, como ser um cidadão mais global e uma pessoa que consegue ter um pensamento que abrace a diversidade na prática. Nós falamos de diversidade, mas fazer a diversidade acontecer é outra coisa. Isso demanda uma visão muito ampla.
Também é preciso entender o papel do líder hoje em dia como o líder mentor e servidor, não mais como o líder detentor da informação e comandante. Nós vamos ter mais de cinco gerações no mesmo local de trabalho e esse líder terá desafios que os líderes que ensinaram a gente não enfrentaram. Ou seja, teremos que aprender agora porque o cenário mudou.
PAULA ABBAS:
Nós estamos ouvindo falar muito sobre customer-centric design, ou seja, foco no usuário e no consumidor, mas isso está mudando para uma visão de living centered design que é ecocêntrica. Não é trabalhar para aquele consumidor, mas para a preservação da vida na Terra, medindo o impacto de tudo que eu faço.
Além disso, é preciso ter uma visão inclusiva, sabendo reconhecer as diferentes inteligências. Como que eu agrego essa inteligência das gerações com uma inteligência das mulheres, por exemplo? É olhar para tudo isso e, principalmente, saber lidar com algo que está muito proibido nas organizações, que são os afetos e as emoções. As pessoas têm emoções e estamos distantes dessa emoção no contexto do trabalho. A crise de saúde mental que se fala hoje é uma crise que já está instalada e é muito grave.
“Liderança humana, governança e cultura prospectiva. É preciso saber trabalhar com processos co-criativos porque as relações de liderança verticais estão acabando, isso está e será cada vez mais horizontal”
– Paula Abbas
TECNOLOGIA
O que vocês acham desse “boom” tecnológico? Nós estamos mesmo preparados?
LETICIA SETEMBRO:
Como se preparar para usar a tecnologia de forma correta para que ela caminhe para algo que faça sentido para o seu negócio? Nisso, existem alguns passos importantes.
Quando lidamos com novas tecnologias, é preciso aumentar o seu repertório e criar familiaridade. Você vai primeiro entender o que é essa tecnologia, quais são os cases que estão dando certo e quais não estão dando certo, conversar com especialistas, ir em eventos, conferências, etc. Um líder precisa estar exposto a esse aumento de repertório constantemente daqui para frente.
Feito esse trabalho, ele pode ir para uma segunda etapa, que seria uma etapa bem futurista, que é a de investigar as tendências. Ele olha e fala “Ok, já entendi para onde as coisas estão indo e agora vou olhar como essas tendências me impactam”. É onde começa uma análise para fora e para dentro, vê o que está caminhando e usa o que está dando certo.
Uma terceira etapa seria mapear as possíveis oportunidades e desafios e me preparar para isso. Existem tecnologias que podem matar um negócio por completo então essa análise precisar olhar para dentro!
Por fim, entra a etapa de ensaiar o cenário de futuro. Desenhar um cenário em que essa tecnologia está completamente massificada para imaginar o que eu faço. Esse ensaio é muito rico, onde você começa a traçar possibilidades de caminhos e, por fim, coloca isso numa régua estratégica. Isso vai envolver o que eu preciso desenvolver dentro de casa? O que eu preciso levantar de recursos? Quanto preciso investir em treinamento de talentos? O que eu preciso adicionar ou priorizar no meu planejamento estratégico?
PAULA ABBAS:
Nem tudo é para todo mundo e nem tudo é para agora. É um ajuste muito fino de qual dor que estou buscando solucionar, do que de fato eu consigo solucionar e em que horizonte de tempo. O timing é muito importante.
FUTURO
Para finalizar: qual é a próxima mudança cultura que iremos passar? O que precisamos deixar para trás e o que precisa permanecer conosco se quisermos nos adaptar a essa mudança de realidade?
PAULA ABBAS: Eu diria três coisas pontuais. Precisamos de uma transformação cultural e ela vai ter que acontecer por força sobre essa questão do egocentrismo, essa grande crise climática que se pronuncia vai operar em níveis mais profundos e trazer a necessidade de deixar de olhar para o meu individual para ter uma perspectiva mais coletiva. Essa é uma transformação cultural importante de fundo e que eu percebo que está acontecendo a passos de tartaruga, mas é uma transformação importante que nós iremos passar e urgente.
A outra é a questão da adaptação do tempo. A nossa percepção de tempo, como usamos o nosso tempo e a adaptação disso às nossas questões de saúde e de bem-estar. Como que as organizações negociam isso com seus funcionários? Como que eu, individualmente, negocio esses temas de reequilíbrio na minha vida?
Por fim, a ressignificação do trabalho, do homem no mundo, da função do ser humano no contexto social frente a todas as transformações tecnológicas que vão nos engolir em pouco tempo. Parecia que ia ser mais longo do que está se apresentando.
“Nós não vamos salvar o planeta, mas estamos tentando salvar a nossa vida no planeta. E esse é um trabalho que não se faz sozinho” – Paula Abbas
LETICIA SETEMBRO:
E se for olhar para a cultura empresarial atual, o que nós como futuristas diríamos? Não tem como você se apoiar naquilo que sempre deu certo. Não é garantia que vai continuar dando certo. Pode dar certo em partes? Até pode, mas não vai mais garantir isso a médio e longo prazo.
Então, tire essa noção e essa percepção equivocada de que a gente controla o futuro e sabemos para onde ele está indo. Nós vemos líderes dentro de empresa falando “não” para grandes projetos de inovação com grande potencial porque acham que a coisa não vai acontecer. Mas vai sim! Você só não quer lidar com isso na sua gestão. Não é uma questão individual, é a perenidade de uma empresa.
Para você falar “não” para um projeto de inovação precisa estar muito embasado. E para estar muito embasado é preciso desenvolver essa alfabetização de futuro. Desenvolver como trabalhar essa informação toda e se sentir um pouco mais confortável para lidar com as tendências. Isso traz a tomada de decisão para o centro, tirando a ansiedade e o medo em relação ao futuro.
Como futuristas, a melhor indicação que podemos dar para quem está dentro de uma empresa é: faça uma mudança cultural e tome decisões por esse caminho.
“É importante lembrar que, diante do cenário complexo, a receita de sucesso do passado não garante o sucesso no futuro”
– Leticia Setembro
Por Fernanda Ricardi e Leonardo César – Entrevista exclusiva publicada na Revista MundoCoop edição 111
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