Em 2022, o Brasil ultrapassou a marca de 10 gigawatts (GW) de potência instalada em micro e minigeração distribuída, categoria de energia elétrica gerada pelos próprios consumidores. Isso representa um crescimento de dez vezes desde 2019. Hoje são mais de 2 milhões de consumidores utilizando essa modalidade, segundo o Painel de Dados de Mini e Microgeração Distribuída.
Fomos à Paraíba no primeiro semestre de 2023 para investigar os crescentes investimentos em energia eólica no estado e seus impactos na agricultura familiar. Em meio a relatos de ameaça e perda de modos de vida, nos deparamos também com experiências contrárias aos modelos convencionais, tanto de agricultura, quanto de geração de energia. Uma delas fica a 317 quilômetros da capital paraibana, na região do sertão.
A Usina Solar Bem Viver I foi inaugurada em janeiro de 2023 pela Cooperativa de Energia Solar Bem Viver, coletivo formado por 22 associados, entre acadêmicos, professores, engenheiros e pessoas de movimentos sociais. A instalação conta com 83 módulos fotovoltaicos que geram uma potência instalada de 38 KWp, o suficiente para abastecer ou reduzir os custos das casas dos cooperativados, que usufruem da energia gerada ali a partir de uma cota máxima de 200 kWh por residência. KWp significa quilowatt-pico, que é a medida utilizada em módulos fotovoltaicos e representa o máximo de energia produzida em condições ideais.
Walmeran Trindade, engenheiro elétrico e professor do Instituto Federal da Paraíba (IFPB), é responsável técnico pela cooperativa. Ele explica que uma casa média em contexto urbano consome aproximadamente 2 KWp.
Cada sócio é responsável pela doação de uma placa a fim de incorporar um grupo de agricultores familiares da região que participam como beneficiários da cooperativa. A ideia inicial era que todos fossem cooperados, inclusive os agricultores, mas a participação deles poderia impactar na seguridade social – devido ao contexto rural, eles são inseridos na categoria “especial” do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) e, ao participarem de uma empresa, poderiam ter de abrir mão do benefício.
Agora a cooperativa segue em estudos para viabilizar esse plano. O perfil principal são agricultores que tenham consumo alto de energia por trabalharem com o uso de tecnologias como irrigação ou agroindústria. Para Walmeran, essa insegurança jurídica representa um grande equívoco a ser revisto. “Trata-se de um novo paradigma de transição energética justa, a partir da geração compartilhada de energia. A legislação precisa acompanhar essas mudanças.”
A iniciativa nasceu no Comitê de Energia Renovável do Semiárido (Cersa), a partir do programa “Cuidando da Nossa Casa Comum”, que atua em ações relacionadas ao combate à crise climática a partir da conscientização e da mobilização da sociedade civil urbana e rural.
A estrutura de placas solares da cooperativa traz uma ideia nova: aproveitar a inclinação da instalação para captar água de chuva. Isso porque os painéis solares precisam ser periodicamente limpos para garantir sua eficiência e, se fosse depender dos poços, concorreriam com a comunidade do entorno nos períodos de estiagem. Então, entre as fileiras de placas foram instaladas canaletas que levam a água da chuva para uma cisterna.
“Nossa intenção, além de gerar energia para o grupo, é gerar ideias para as pessoas irem multiplicando”, diz José de Anchieta, membro da cooperativa que nos recebeu no local. A instalação da usina foi feita dentro do Centro de Educação Popular e Formação Social, um espaço antes degradado por monoculturas e recuperado para ser um centro de experimentação e atividades formativas relacionadas à segurança hídrica e alimentar.
Caminhando pela propriedade, observamos espécies nativas e exóticas cultivadas a partir de tecnologias sociais – cisternas, biodigestores e sistemas de gotejamento para horta, entre outros. Um destaque é o aproveitamento de um lajedo, elevação rochosa comum na região, que funciona como captador de água de chuva, passa por canaletas construídas e alimenta uma enorme cisterna. “Um lajedo não é só um lajedo, não é só uma pedra no caminho”, observa Anchieta.
“À medida que as comunidades vão se interessando, a gente vai organizando novos espaços de geração de energia. Nós temos o que vai ser a primeira filial dessa, que fica numa área de assentamento a cerca de 60 quilômetros daqui, no município de Várzea”, contou o engenheiro florestal, que tem em sua trajetória um largo envolvimento com movimentos sociais.
Devido à interpretação jurídica de que os agricultores poderiam perder benefícios sociais, a integração deles à cooperativa foi suspensa. Por isso, a usina já instalada, cuja potência é de 13 kWp, vai ser doada para o assentamento Novo Horizonte, onde vivem 28 famílias, segundo dados do Incra de 2017. Com a doação, fica para a associação comunitária o papel de gerir o compartilhamento de energia de maneira autônoma.
“O interessante é que essa pequena experiência já correu o mundo. A gente já participa de encontros falando da experiência”, diz Maria Joseny de Lima Medeiros Assis, que também é associada. Ela conta que a iniciativa foi compartilhada em um encontro de cooperativas na Alemanha e que a organização também participa de eventos em território nacional.
A escolha pelo formato de cooperativa não é à toa. “O que a gente quer é o fortalecimento desse formato, que as pessoas entendam esse modelo”, diz Maria Joseny. Entre os princípios da organização está a economia solidária. “Porque o que a gente vê é que tá muito em alta essa questão da energia, da energia eólica, da energia solar. E muitos gestores e governadores estão encantados com isso, que, na verdade, vai trazer prejuízos para a própria população”, complementa. “O desejo da cooperativa é que o modelo chegue ao presidente Lula.”
Para Walmeran, o compartilhamento de energia está dentro de uma dimensão essencial: a autogestão, um dos pilares do que seria a verdadeira sustentabilidade. Ele cita também o nexo água-energia-alimento, uma abordagem que nasce na academia para propor uma mudança sistêmica a partir desses três elementos de forma conjunta e que tem fomentado debates mundiais entre especialistas de diferentes áreas. A ideia é evitar o olhar fragmentado para as ações em prol da sustentabilidade, de forma a reduzir as compensações entre setores, como acontece nas metas da Agenda 2030. “A plataforma ODS (Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU) é muito interessante, mas tem pouco senso prático ao se pensar na base da pirâmide”, diz.
Em março de 2023, dois meses depois da abertura da cooperativa, Lula esteve na inauguração do Complexo Renovável Neoenergia – Parque Eólico Chafariz, primeiro complexo híbrido de geração de energia solar e eólica do país, que fica no município de Santa Luzia, na Paraíba. O empreendimento se estende por uma área de 8.700 hectares, segundo o site da empresa responsável, Neoenergia.
O governo do petista tem cada vez mais indicado seus direcionamentos em prol das grandes obras com investimento privado, o que vai na contramão de iniciativas como a Cooperativa de Energia Solar Bem Viver. Em maio deste ano, durante encontro do Consórcio dos Governadores do Nordeste, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, disse ter recebido uma diretriz do presidente de transformar o Nordeste brasileiro no maior celeiro de energia limpa e renovável do mundo. O Novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) retoma iniciativa de 16 anos atrás que marcou o governo do PT e tem como foco o investimento em infraestrutura. Em seu novo ciclo, o programa prevê um investimento de R$ 75 bilhões em geração de energia, majoritariamente renovável.
A construção imagética de “celeiro do mundo” ignora, porém, os questionamentos ambientais aos empreendimentos. “O espaço para a produção de alimentos, tanto de culturas agrícolas como de criação de animais, vem sendo afetado, o bioma está sendo devastado, com a possibilidade de aumentar a desertificação. E tudo isso está sobre o manto da energia limpa que não é limpa. A fonte de energia é limpa, o sol e o vento, mas o processo de geração não é limpo e está sendo de grande impacto”, afirma Walmeran.
Curiosamente, o local de funcionamento desse pequeno empreendimento está dentro de uma área denominada “corredor dos ventos”, que é visada pelas grandes empresas de geração de energia eólica. Anchieta explica que se trata de uma região de planalto que começa na cidade de Passa e Fica (RN), e avança por Paraíba, Pernambuco e Alagoas.
“Nós estamos aqui a uns quatro, cinco quilômetros em linha reta do ponto mais alto da Paraíba, que é o pico do Jabre. E toda essa área aqui onde a gente está é uma área que está no corredor dos ventos, entendeu? Então, tudo isso está mapeado para as grandes eólicas. É um grande desafio que a gente tem, que a gente enfrenta.”
Ao redor da usina, um pequeno terreno cercado, é possível ver várias pequenas propriedades rodeadas por morros e lajedos. “Imagina se esse [o lajedo conectado à cisterna do Centro de Educação Popular e Formação Social] gerou essa quantidade de água, quanto aquele ali não pode gerar em captação de água também?”, vislumbra Anchieta ao olhar a propriedade vizinha.
O semiárido brasileiro, onde está localizada Maturéia, tem como características climáticas altas temperaturas, chuvas irregulares, altas taxas de evapotranspiração e períodos longos de seca, o que contribui para o risco de escassez hídrica. “Pena que os nossos gestores caíram na mesmice de ficar só dependendo dos recursos de repasses de fundo de participação, mas não constroem políticas locais aproveitando as suas potencialidades”, lamenta Anchieta. “A ideia nossa é que se torne política, porque somos entidade, não somos governo.”
Um nicho de mercado em ascensão
Em 2012, uma resolução normativa passou a permitir a produção de energia elétrica pelo próprio consumidor a partir de fontes renováveis ou cogeração qualificada (processo de geração de duas ou mais energias). Desde então, a Micro e Minigeração de Energia Elétrica distribuída (MMGD) se tornou uma categoria em ascensão e, em 2022, um marco legal passou a regulamentar a modalidade. Foi estabelecido um teto para a obtenção de subsídios fiscais pelo uso das redes de transmissão e distribuição, o que tem gerado embates entre o setor, parlamentares e a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
Por microgeração distribuída entende-se a “central geradora com potência instalada até 75 quilowatts (KW)”, segundo o portal do Ministério de Minas e Energia, para consumidores residenciais, comerciais ou rurais de pequeno porte. Já a minigeração distribuída é aquela com potência acima de 75 kW e menor ou igual a 5MW.
Em tempos de mudanças climáticas e da visibilidade dos impactos socioambientais gerados por mega empreendimentos, como Belo Monte, e até pelas chamadas fontes renováveis, como os parques eólicos, esse aumento da energia distribuída parece representar um avanço. Mas, mais uma vez, o que era possibilidade de descentralização tem se transformado em um prato cheio para desigualdades e sua capitalização.
É possível encontrar no YouTube diversos vídeos ensinando a transformar os excedentes da geração distribuída em “créditos” e, consequentemente, em negócio. Empresas de instalação das placas também anunciam o serviço como um investimento, garantindo que é possível participar dos leilões de energia ou se inserir no chamado “mercado livre de energia”.
Algumas delas têm como público-alvo produtores rurais, utilizando o discurso da diversificação da produção, como a Yaw, do Paraná. “Continue a fazer o que você está fazendo. Deixe que o sol e a Yaw Energia Sustentável trabalhem para você para monetizar a sua propriedade”, diz o CEO em um vídeo no canal da marca. Ele é Lauro Bianchin, cujo canal no YouTube tem como descrição: “Transformo pessoas comuns em milionários”.
Uma resolução publicada pela Aneel no começo deste ano tem gerado um impasse entre os interessados na energia solar, tanto que foi tema de audiência pública realizada em 17 de maio na Câmara dos Deputados. Representantes de associações da sociedade civil, como Hewerton Elias Martins, presidente da Associação Movimento Solar Livre, presente no encontro, dizem que a decisão quebra com acordos anteriores, desprivilegia pequenos empreendedores e favorece grandes empresas de energia centralizada, por modificar resoluções normativas anteriores e definir cobrança de tarifa pelo uso do sistema de distribuição.
A nova regulamentação pode ter criado entraves para alguns investidores, mas não para um novo modelo que surge na onda dos streamings: energia renovável por assinatura.
Sem precisar investir em infraestrutura, o cliente se associa a uma empresa geradora de energia, paga mensalmente uma espécie de aluguel e recebe créditos que são abatidos na conta final de energia elétrica. Em agosto deste ano a empresa Sun Mobi, que tem como clientes as redes de fast-food Subway e China in Box, inaugurou seus serviços na capital paulista. Segundo reportagem da CNN Brasil, já são 6,4 mil usinas nesse modelo no país, com mais de 300 mil consumidores.
Enquanto uma parcela da população que pode investir em placas solares ou acessar esse novo nicho de mercado tem algum alívio na hora de pagar a conta de luz, outra grande fatia segue pagando valores altos. É o chamado subsídio cruzado, já alertado por técnicos do Ministério da Economia em 2019.
Durante a audiência pública realizada de maio, o diretor-executivo de Regulação da Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica (Abradee), Ricardo Brandão, explicou que houve um crescimento sem precedentes de pedidos de conexão e que o subsídio governamental disponível para isso onera o usuário comum da rede de energia.
“O reflexo é que as distribuidoras e transmissoras vão ter que fazer um investimento muito expressivo para atender a demanda. Só que esse investimento aumenta a tarifa do consumidor porque não é um investimento como aumento de rede, que traz novos consumidores”, disse no evento.
Em sua apresentação, um gráfico mostrava os subsídios governamentais previstos e, para 2023, o valor alcançava R$ 6,3 bilhões, segundo as projeções da Abradee. Esse ônus, segundo Brandão, fica para os consumidores que não têm geração distribuída. “O TCU [Tribunal de Contas da União] já disse que esse modelo é socialmente perverso porque transfere renda do mais pobre para o mais rico e é insustentável”, complementou. Segundo dados da instituição, 95% das instalações são feitas pelas classes A e AA.
O marco legal estabeleceu janeiro deste ano como prazo para cessar os pedidos subsidiados. Agora, o PL 2703/2022, do deputado federal Celso Russomanno (Republicanos – SP), que amplia esse prazo, avança no Senado depois de aprovado na Câmara dos Deputados no fim do ano passado.
Fonte: Texto de Luisa Coelho / O Joio e o Trigo
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