Inovar e trazer soluções benéficas para a sociedade está na essência do trabalho cooperativista. E um dos setores em que o coop tem dado aula, no mercado internacional, é justamente no gerenciamento e compartilhamento de dados. Quer ver?
Em Nova Iorque, nos Estados Unidos, a Savvy Coop — uma cooperativa de pessoas portadoras de doenças graves — encontrou uma maneira diferente e original de lidar com os dados de seus cooperados. Eles estão compartilhando informações sobre a experiência que têm no enfrentamento de uma doença com institutos de pesquisas e laboratórios que precisam entender melhor a realidade desses pacientes.
De acordo com a fundadora da cooperativa, Jen Horonjeff — ela própria paciente portadora de artrite juvenil, uma doença que afeta as articulações do corpo no período da adolescência — a Savvy Coop foi a primeira cooperativa a atuar sob a perspectiva dos pacientes e não dos médicos, dos hospitais ou da indústria.
A história da Savvy se confunde com a de Jen, que também sobreviveu a um tumor no cérebro e se tornou uma pesquisadora PHD na área de saúde. Depois de ser procurada várias vezes para compartilhar com pesquisadores sua experiência como paciente, Jen teve a ideia de reunir pacientes com diferentes experiências de vida em uma cooperativa. Objetivo? Coletar as vivências de enfrentamento às doenças para compartilhá-las com a comunidade científica e com a sociedade. Assim, o que poderia ser um peso ou mais uma experiência isolada e desconhecida de enfrentamento de uma doença, se transformou em uma grande oportunidade não só de renda, mas de melhora da qualidade de vida desses pacientes.
Por meio de questionários, participação em grupos focais, entrevistas, testes de produtos, entre outras estratégias, a Savvy Coop faz uma ponte entre empresas e pacientes cooperados.
Na página da cooperativa, a fundadora destaca que o grande valor da cooperativa é “permitir que a indústria trabalhe junto com os pacientes” e que a principal missão da coop é “colocar o paciente no centro do desenvolvimento dos tratamentos ou insumos que serão usados por eles mesmos”. A ideia é contribuir para que as inovações em saúde sejam mais inclusivas, diversas e efetivas para os pacientes.
INTERESSE MÚTUO
Dentro da Savvy Coop, as histórias de vida dos cooperados são ativos negociados com pesquisadores e empresas de saúde. Funciona assim: uma clínica, um laboratório ou uma indústria entra em contato com a cooperativa e apresenta sua necessidade, que pode ser, por exemplo, uma entrevista de 60 minutos com uma ou mais pacientes diagnosticadas com câncer de mama, para apoiar o desenvolvimento de um medicamento novo para a doença. As demandas são registradas pela coop e apresentadas aos pacientes cooperados.
Se der “match” (interesse mútuo) entre a demanda da indústria e a experiência do paciente, ambos ganham. Os pacientes são pagos por colaborarem respondendo aos questionamentos, por participarem de experimentos ou de algum processo de desenvolvimento de pesquisas e produção de insumos de saúde.
Como cooperados que são, ao final de cada exercício, esses portadores de doença crônica também recebem parte dos resultados obtidos pela Savvy, de forma proporcional à colaboração de cada (sobras) . Além disso, têm direito a voto em processos decisórios e contam com uma rede de apoio mútuo que os ajuda a enfrentar suas doenças.
Para a pesquisadora do Instituto de Tecnologia e Sociedade (ITS Rio) Ana Carolina Bonelli esse modelo de compartilhamento de dados é positivo, pois tem a autorização dos usuários e ainda traz valor para os cooperados.
“Quando o dado passa pela gestão da cooperativa, ele passa pelo consentimento, por uma gestão de algoritmos, gerenciamento dos locais, de criptografia, de identidade de acesso. Se os cooperados acharam por bem compartilhar e serem remunerados por isso, por que não? Esse é outro ponto positivo do cooperativismo, os resultados são repartidos e fatiados”, ressalta Bonelli.
Vale destacar: sobreviventes de doenças graves, cuidadores, acompanhantes de portadores de doenças crônicas e autoimunes, profissionais de saúde também podem ser cooperados e colaborar com seus insights. A cooperativa tem ainda um programa de referência que remunera pessoas não membros ou cooperadas. Para ter acesso ao benefício basta indicar pacientes que aceitem participar da coop e queiram compartilhar informações.
DADOS PARA A SAÚDE DE TODOS
Com o lema “Meus Dados, Nossa Saúde” a cooperativa suíça MIDATA também coleta dados de pacientes com o objetivo de contribuir para pesquisas científicas sobre trata – mentos de diferentes doenças. Ao contrário da Savvy, a MIDATA não cobra pelo compartilhamento de in – formações, portanto, também não remunera as pessoas que aceitam disponibilizar suas experiências no enfrentamento da doença.
A cooperativa desenvolveu uma plataforma que armazena dados de saúde coletados de startups, aplicativos, provedores de tecnologia, grupos de pesquisa, entre outros. O sistema foi desenvolvido pelas universidades suíças ETH Zurich e a de Ciências Aplicadas de Bern.
Na plataforma, ficam armazenadas diversas informações sobre condição de saúde, detalhes de cirurgias, tratamentos, exames, medicamentos, documentos como prontuários médicos, características físicas dos pacientes, entre outros dados.
Os usuários da plataforma podem contribuir ativamente autorizando o uso de seus dados em pesquisas médicas e estudos clínicos. São eles que decidem livremente sobre o uso dessas informações em projetos científicos. E se quiserem podem se tornar membros da cooperativa, condição que dá direito a eles de participar do controle da organização.
Para atender aos requisitos de proteção e segurança, todas as informações “doadas” são criptografadas e apenas os usuários com conta têm acesso aos registros por meio de login. A cooperativa ressalta que garante a soberania dos cidadãos sobre a forma como os dados serão utilizados.
“O cooperativismo já tem em sua essência valores como a democracia, liberdade, equidade, solidariedade e justiça social, visando o bem comum. Tendo em vistas que as chamadas ‘Cooperativas de Dados’ são sistemas de gerenciamento de dados que pertencem aos seus membros, eles vão poder decidir a melhor forma de fazer uso destes dados. E o melhor, já o fazem tendo a cultura de governança destes dados para o bem comum e benefício dos cooperados como base”, destaca Fabíola Nader Motta, gerente geral do Sistema OCB.
CORONA SCIENSE
Fundada em 2015, a MIDATA também oferece serviços de desenvolvi – mento de aplicativos de saúde, estilo de vida e bem-estar, consultoria sobre questões éticas, apoio no gerenciamento e consentimento do uso de dados e outros.
Mas foi depois da pandemia que cresceu o número de projetos tecnológicos de coletas de dados lançados pela MIDATA, entre eles, o aplicativo “Corona Science”, que permite às pessoas que tiveram Covid-19 informarem sobre sua condição de saúde e os sintomas. Em contrapartida, o usuário tem acesso a várias informações e serviços de suporte.
“Toda essa crise sanitária mundial acelerou muito a necessidade de compartilhar dados de maneira mais responsiva para o bem comum, em busca de soluções para produção de vacinas e outros fins”, completou Ana Carolina Bonelli, pesquisadora do ITS.
A acadêmica cita, ainda, outra cooperativa europeia de saúde que tem feito um trabalho de desta – que quando se trata de compartilhamento de dados: a Salus Coop.
Criada em 2017 na Espanha, a cooperativa engloba a atuação de diferentes atores para cumprir todo o fluxo de receber as informações dos usuários e de unidades de saúde públicas ou privadas, agregar essas informações e repassá-las de forma estruturada e segura para as empresas e outras instituições interessadas.
A coop desenvolveu um modelo tecnológico para garantir a confidencialidade dos dados, independente da forma como os outros atores tratam ou mantêm os dados.
Em seu manifesto, a Salus Coop destaca que não tem fins lucrativos e que busca colaboradores voluntários para contribuir. Também convida as autoridades sanitárias para desenvolver licenças de uso e arquiteturas tecnológicas que incentivam a doação de da – dos, entre outras iniciativas que possam estimular as pessoas a dividirem informações que sejam úteis para acelerar as pesquisas científicas e o controle de estados de emergência, como a pandemia do coronavírus.
MOBILIDADE INTELIGENTE E SUSTENTÁVEL
Se sua condição de saúde pode fazer diferença na vida de outras pessoas e da sociedade como um todo, informações como os lugares por onde você dirige, os quilômetros rodados por dia e quanto tempo leva para se deslocar de um ponto a outro na cidade também são valiosos para o cooperativismo, o mercado e o poder público.
De olho na possibilidade de contribuir para a tomada de decisões relacionadas à mobilidade urbana, a cooperativa Driver’s Seat criou um aplicativo para ser utilizado por motoristas de aplicativos de transporte, como o Uber. O app gera uma série de dados sobre as corridas feitas pelo motorista.
As informações são coletadas pela cooperativa e repassadas para órgãos públicos ou centros de pesquisa dados para apoiá-los na tomada de decisões relacionadas à gestão da mobilidade urbana.
O objetivo é melhorar o planejamento da arquitetura das cidades e encontrar soluções para congestionamentos e outros problemas de trânsito e mobilidade. As informações coletadas pelos motoristas são vendidas pela cooperativa, que reverte os ganhos para os próprios condutores.
“A partir do momento que você usa as cidades para o bem público, você cria uma inteligência coletiva urbana e as soluções deixam de ser oferecidas somente pelos governos e passam a ser oferecidas também por startups, por ONGs e outros atores da sociedade que não somente o governo. Então, a gente tem cidadãos mais participativos e colaborativos promovendo a democracia nas cidades”, explica Fabíola Nader Motta, do Sistema OCB.
LEGADOS E DESAFIOS
O uso de informações pessoais para basear decisões voltadas a mudanças sociais e inovações tecnológicas é uma tendência em ascensão no coop internacional. Ele tem sido muito aplicado na estruturação das Cidades Inteligentes, com o intuito de criar uma inteligência coletiva urbana para resolver problemas públicos. Seu uso vai desde o gerenciamento de tráfego nas cidades até o uso de informações pessoais para promover a saúde da população.
De fato, o trabalho das chamadas cooperativas de dados pode favorecer o fortalecimento de todo o ecossistema de governança de dados e estimular a ampliação da legislação de proteção de dados pessoais e de transparência de da – dos públicos, por meio de decretos municipais de dados abertos e leis de governo digital.
Mas para que experimente uma expansão mais significativa, esse ramo do cooperativismo ainda precisa atravessar algumas barreiras, como quebrar silos de dados, já que na maioria das vezes as in – formações não estão centralizadas em um único portal de dados ou não estão padronizadas e formatadas da mesma maneira.
Há ainda o desafio de se adequar a diferentes legislações e de construir uma infraestrutura tecnológica segura e eficiente, além da falta de recursos.
Para superar parte dos desafios, existe a possibilidade de criar uma coordenação de rede e fomentar uma cadeia produtiva de valor por meio do compartilhamento de infraestrutura computacional, de dados e recursos humanos e, principalmente, estabelecer objetivos claros de negócios compartilha – dos entre os parceiros da cadeia.
Outra alternativa passa pela inteligência de dados, com o desenvolvimento de serviços digitais flexíveis e adaptáveis, permitindo análise constante da interação e do comportamento do usuário com os serviços ofertados.
“Temos grandes desafios para os próximos anos de transformação digital, mas, para quem já possui em sua essência cultural a cooperação, metade do caminho já foi trilhado. A governança de dados de forma ética em compliance com as leis vigentes é um dos maiores legados que as cooperativas de dados podem oferecer”, ressalta Fabíola.
Fonte: Sistema OCB
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