A recuperação judicial se tornou, nas últimas décadas, um mecanismo central para a preservação da empresa em crise e para o equilíbrio das relações econômicas. No centro desse processo está o Administrador Judicial, figura que atua como verdadeiro órgão técnico do juízo, responsável por conferir precisão às informações essenciais ao processamento da recuperação, especialmente na verificação e classificação dos créditos.
A importância desse papel não pode ser subestimada: a correta categorização dos créditos, longe de ser uma etapa meramente formal, define a estrutura do plano, afeta os quóruns deliberativos, determina quem participa da assembleia e estabelece a extensão do passivo sujeito ao regime recuperacional.
É justamente por se tratar de um ato técnico e juridicamente vinculado que a classificação de créditos exige do Administrador Judicial não apenas conhecimento normativo, mas também diligência, prudência e análise cuidadosa dos documentos apresentados. A legislação não lhe confere discricionariedade nessa tarefa. Dessa maneira, o administrador judicial não pode reinterpretar, flexibilizar ou adaptar o regime jurídico que define a natureza de cada crédito, tendo como dever aplicar a lei, de modo que sua responsabilidade decorre diretamente dessa vinculação.
Nesse cenário, talvez a falha mais sensível e de maior potencial lesivo seja a submissão indevida dos créditos cooperativos à recuperação judicial, especialmente quando claramente derivados de ato cooperativo típico. A Lei nº 11.101/2005, após a reforma promovida pela Lei nº 14.112/2020, foi categórica ao afirmar, no art. 6º, §13, que os créditos decorrentes de ato cooperativo não se submetem aos efeitos da recuperação judicial, por se tratar de verdadeira hipótese legal de extraconcursalidade. Tal determinação é objetiva, automática e independe de decisão judicial: decorre diretamente da natureza jurídica da operação realizada entre cooperado e cooperativa.
Importa dizer então que a proteção conferida pela legislação ao ato cooperativo foi ratificada pela jurisprudência do c. Superior Tribunal de Justiça ao afirmar a interpretação do art. 6º, §13, da Lei de Recuperação Judicial. A Terceira Turma, em julgados unânimes relatados pelo Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva (REsp 2.091.441/SP — Sicredi Alta Noroeste; REsp 2.110.361/SP — Sicoob Nosso), esclareceu de forma taxativa que a concessão de crédito pelas cooperativas aos seus associados integra diretamente seus objetivos sociais e, portanto, caracteriza ato cooperativo típico, ainda que a operação possua encargos e estrutura semelhantes às praticadas pelo mercado financeiro.
A construção e consolidação do entendimento não se limitou à Terceira Turma. No dia 01 de dezembro de 2025, a Ǫuarta Turma do STJ também enfrentou a matéria pela primeira vez e, de forma igualmente unânime, reconheceu a natureza extraconcursal do ato cooperativo no Agravo Interno no REsp 2.207.441/PR (Sicredi AliançaPR/SP), sob relatoria da Ministra Isabel Gallotti. O colegiado aplicou as mesmas premissas construídas no precedente da Terceira Turma, reafirmando que os negócios jurídicos celebrados entre cooperativas e cooperados, voltados à consecução de seus fins sociais, nos termos do art. 79, da Lei nº 5.764/1971, não podem ser submetidos à recuperação judicial.
Ǫuando o Administrador Judicial, por imperícia ou negligência, inclui tais créditos no quadro geral, classificando-os como concursais, não apenas viola comando legal expresso, mas também altera artificialmente o passivo sujeito ao plano, distorce os quóruns de votação, submete credores a uma assembleia da qual não deveriam participar e fragiliza a segurança jurídica do processo. Para a cooperativa credora, o prejuízo é imediato: perde a prerrogativa de executar o crédito livremente e é forçada a submeter-se a um regime ao qual a lei expressamente a afastou. Para os demais credores, a presença indevida desses créditos no concurso desequilibra a relação entre as classes e compromete a viabilidade do plano.
A doutrina afirma que o Administrador Judicial deve ser pessoalmente responsável pelos atos que pratica em prejuízo da massa, do devedor e dos credores quando age com dolo ou culpa, conforme estabelece o art. 32 da Lei de Recuperação Judicial . Essa responsabilização não é acidental, mas decorre da própria estrutura do instituto, já que o Administrador Judicial exerce uma função pública delegada, marcada por deveres de diligência, lealdade e técnica, que não podem ser relativizados no curso do processo.
O Superior Tribunal de Justiça segue a legislação, reconhecendo que os auxiliares do juízo respondem pelos danos que causarem no desempenho de suas atribuições, e o Administrador Judicial se insere integralmente nessa categoria. O raciocínio é simples: se a função é delegada pelo Estado e interfere diretamente na esfera patrimonial de terceiros, o descumprimento dos deveres funcionais impõe responsabilização.
Foi exatamente essa a orientação reafirmada no REsp 1.841.021/PR , em que o STJ assentou a responsabilidade do Administrador Judicial sempre que configurados dolo ou culpa na condução de suas funções, ainda que o prejuízo decorra de ato de terceiro por ele escolhido para auxiliá-lo.
O julgado evidencia que a atuação do Administrador Judicial não é imune a controle e que a responsabilidade é inerente ao cargo, sobretudo quando uma conduta errônea e evidentemente lesiva, como a classificação indevida de
créditos, produz impacto patrimonial direto sobre credores e compromete a integridade do processo recuperacional.
Nesse sentido, a responsabilidade civil subjetiva do Administrador Judicial emerge sempre que atua com imperícia, negligência ou imprudência, sobretudo em atos juridicamente vinculados, como a verificação e classificação de créditos.
O erro de classificar como concursal um crédito que é extraconcursal por determinação legal não pode ser visto como equívoco tolerável. Trata-se de violação clara do dever de diligência e de observância da legalidade, especialmente porque o regime jurídico dos créditos cooperativos não é sequer controvertido, já que o legislador optou por conferir-lhes tratamento diferenciado e afastado do concurso de credores, preservando a mutualidade, solidariedade, bem como a natureza não mercantil e a autonomia do cooperativismo, garantindo, assim, sua função social-econômica.
Assim, a responsabilização civil do Administrador Judicial, nesses casos, não representa um excesso ou uma punição desproporcional, mas um mecanismo necessário para garantir a integridade do processo recuperacional e a confiança das instituições que dele participam.
A correta condução da recuperação judicial exige precisão técnica e respeito rigoroso à legalidade. Ǫuando o Administrador Judicial falha em cumprir esse dever, especialmente ao submeter indevidamente créditos cooperativos ao concurso, compromete não apenas o direito da cooperativa credora afetada, mas todo o equilíbrio do procedimento. Reconhecer sua responsabilidade civil nesses casos não é apenas juridicamente possível, como é indispensável para preservar a efetividade, a legitimidade e a credibilidade do sistema recuperacional brasileiro.
Nesse contexto, considerando os reiterados abusos identificados em muitos dos pedidos de Recuperação Judicial submetidos por devedores, não raro estimulados por terceiros, bem como considerando o crescente manejo dessas ações contra cooperativas de crédito, inobstante a previsão expressa da Lei em sentido contrário, talvez seja o momento das cooperativas de crédito voltarem seus olhares também para atuação fundamental e vinculada dos Administradores Judiciais e a efetiva quantificação dos danos decorrentes dos seus atos, de modo a buscar responsabilizá-los pelos danos naturalmente surgidos da manutenção indevida dos seus créditos no processo de recuperação.
Por Manfrini Andrade de Araújo, Advogado Cooperativista, e Maria Clara Oliveira Rêgo Barros, Advogada Empresarial












