Sabe aquilo de não adiantar ser bom e ter que provar competência o tempo todo? Cruzada a fronteira da chegada dos produtores ao ambiente da Semana Internacional do Café, faltava ainda deixar o caminho livre para quem produzia canéfora/robusta, cuja variedade conilon é a principal representante no Brasil. A espécie ainda engatinhava no reconhecimento da qualidade e foi “barrada no baile” nas primeiras edições do “Coffee of the Year” (COY).
Se hoje vemos a consagração de Luiz Cláudio de Souza (Muqui), tricampeão do concurso; e os rondonienses ocuparem os cinco lugares do pódio na última Semana Internacional do Café (SIC), foi graças à “petulância” dos capixabas produtores de canéfora que a SIC e até a Associação Brasileira de Cafés Especiais (BSCA) passaram a ver com outros olhos a espécie produzida em baixas altitudes e só valorizada no mercado de solúvel.
A jornalista e idealizadora do evento Mariana Proença relata que a participação dos produtores espírito-santenses ganhou força com a criação da categoria Canéfora no COY de 2017.
“Os produtores de canéfora tiveram que quebrar muitas barreiras para comprovar qualidade. O próprio Incaper lançava variedades e trazia informações para a SIC. É um trabalho de muitas mãos e uma exigência dos próprios produtores ao buscarem melhoria e reconhecimento”, diz.
Para Mariana, a estreia da espécie no evento mudou até a forma de comunicação dos cafés. “O stand do Espírito Santo passou a mostrar a cara dos produtores e conhecemos Luiz Cláudio de Souza e outros nomes. Vejo brilho nos olhos de cafeicultores que não via antes. Faltava essa noção da qualidade e alguém provar e colocar dentro de uma feira como essa”.
E um episódio de bastidores da SIC, do qual a jornalista participou, retrata bem o esforço para a introdução do canéfora na maior vitrine da cafeicultura nacional.
“No primeiro ano da categoria, separamos as salas e fizemos horário diferente para a prova de canéfora em outra sala próxima da oficial. Quando iniciamos, chegaram três homens enormes atrás de alguém da organização e questionando o porquê da sala diferente. Falei da dificuldade de introduzir a espécie e da necessidade de ir aos poucos e do apoio deles. Disse: ‘preciso de mais amostras, mais pessoas participando para mostrar que há mercado e demanda’. Hoje, temos muitos stands com canéfora, mas no início era inimaginável”.
Conhecendo bem nossos cafeicultores, não foi preciso investigar a identidade do trio para saber se tratar de Bento Venturim e os filhos, Isaac e Lucas, de São Gabriel da Palha e São Domingos do Norte, que confirmam a história acima. Isaac conta que, em 2016, ao visitarem a feira, já produziam conilon cereja descascado. Ao passarem em frente ao stand da BSCA, procuraram os dirigentes na tentativa de se associarem.
“Quando a gente falou que era produtor de conilon, ouvi: ‘a gente só trabalha com café de qualidade’. Foi doído, mas incentivador. Daí pensei: ‘temos café e vamos divulgá-lo’”.
Na época, segundo Isaac Venturim, uma empresa portuguesa encapsulava café e deu à família todo feedback de prova e torra. Os cafeicultores testaram a tecnologia e passaram a levar para o público provar, com ótima aceitação nos eventos. “Quando o produtor fica acomodado, não busca nada diferente. A gente tinha um bom café, mas não onde vendê-lo. A parceira com quem a gente comercializava disse que não estava encontrando mercado. Então ou a gente parava ou dava mais um passo”.
De acordo com Lucas, nessa hora é que entra a Semana Internacional do Café, que conecta produtores com o mercado. “Então a gente começou a frequentar o evento e viu que era outro mundo, que tínhamos que melhorar como produtores para poder atender esse público, muito mais exigente. Oportunidade de divulgar o que o conilon realmente tem”, afirma.
A empreitada deu certo. Em 2018, os irmãos Venturim conquistaram o quinto lugar na categoria Canéfora do COY e, na SIC deste ano, a dupla divulgou os cafés da Fazenda Venturim em um stand próprio. “Buscamos conhecimento, aplicamos e vieram os resultados. A Feira conecta as necessidades do mercado com a valorização do produto com rastreabilidade pelo consumidor final. E a gente consegue modificar e aprimorar com o conhecimento adquirido aqui”, finaliza Isaac.
‘Era como se a gente estivesse dirigindo no escuro, e de farol apagado’ Isaac e Lucas Venturim, produtores de conilon
“Em 2016, fizemos os primeiros experimentos com fermentação. Buscamos conhecimento e entender por que o conilon era desvalorizado. Se o café é bom, a gente ganha concurso, talvez a pessoa não sabe torrar. Eis que um profissional norueguês nos disse que café fermentado era tendência de mercado.
No ano seguinte, o Ifes de Venda Nova fez convênio com a gente para validar essa tecnologia com café conilon. Foi um laboratório e, em 2018, conseguimos escala de produção, não tão numerosa, mas suficiente para vender. Isto chamou atenção da BSCA para conhecer este trabalho no Espírito Santo. Como uma associação que representa cafés especiais poderia excluir o conilon?
Chegou-se a um ponto em que os produtores pensaram até em criar uma outra associação. Mas daí nosso pai, Bento Venturim, propôs sentar para conversar com eles antes de arrumar briga. Numa conversa com a Vanusia Nogueira (diretora da BSCA) foi marcada uma agenda no Estado. A diretoria visitou algumas propriedades, tomou café e anunciou que o conselho aprovou a admissão de produtores de conilon. Nosso pai, Bento, se tornou o primeiro associado. E em dois anos, houve uma mudança monstruosa.
Em 2018, realizamos a primeira exportação de café fino conilon (quando a saca valia US$ 100, exportamos microlote a US$ 300 para a Rússia). E pela primeira vez vimos a valorização do produto, porque até então a gente fazia café de qualidade e, na hora de vender, eram 10% a 15% a mais, não pagava a conta. Daí pra frente, em 2019, já como membros, fizemos o primeiro cupping de canéfora no stand da BSCA na Feira Internacional da Europa.
Quando começamos com projeto de café especial, não sabíamos o que ia acontecer. Meu pai, que tem vivência de cafeicultura em Venda Nova do Imigrante, onde nasceu, diz: ‘não é todo arábica que é especial. É especial aquele que tratamos como especial. Se fizerem a mesma coisa com conilon, também vai dar bebida especial’. Era como se a gente estivesse dirigindo no escuro, e de farol apagado. Meu pai falando: ‘pode acelerar nesta direção, aqui que tem estrada!’. Hoje, a gente já conseguiu ajudar a pavimentar a estrada e tem até uns postinhos de luz! Outros produtores que vieram depois já sabem que existe um caminho”.
‘A palavra mágica da SIC para o conilon foi respeito’ Com a palavra, os irmãos Tássio e Thales de Souza
Thales (E)- “Tive a oportunidade de participar da primeira SIC em BH, em parceria com o MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário), com uma maquininha da Cafesul servindo café no stand. A gente não tinha muita informação de como servir conilon especial. Observava muito a rejeição, não tínhamos representação. Com o passar dos anos, conseguimos oportunidade de abrir mais mesas de cupping. Em 2013, um conilon se destacou numa mesa oficial numa conferência de naturais. Foi solicitada uma amostra, o café foi muito bem visto e começaram a despertar os olhares para o conilon nesse espaço. A qualidade foi melhorando e hoje o conilon é procurado na feira”.
Tassio (D)- “Numa feira como a SIC, que abre as portas ou oportuniza o produtor de estar aqui dentro, este tem a possibilidade de entender toda a cadeia. Temos a ponta, que são os baristas, as cafeterias… Produtor vivenciando isso é muito diferente. Ele sabe o caminho que faz o seu café na cafeicultura do mundo. Quando sai, diz: ‘não imaginava que o café era tanto’. Esse contexto, de o produtor estar numa feira dessa, é crucial para ele entender toda a dinâmica do setor. Fora todo esse enriquecimento, é a possibilidade de mostrar o que ele faz na propriedade. O brilho no olhar ao ver alguém provando café no cupping e querer saber quem produz, a gente nunca conseguiria se não fosse a SIC. A palavra mágica que a feira trouxe para o conilon foi respeito. Antes nem bebida era considerada, e com isso o cafeicultor passou a ter um respeito muito grande”.
‘Hoje temos produtores com café referendado para o mercado’ Franco Fiorot, secretário Municipal de Agricultura de Linhares
“O programa de Linhares começa em 2018, como base para os produtores se interessarem e terem orientações adequadas para ter café especial para apresentar. Hoje, temos um grupo de produtores, embora com lotes pequenos, que possuem café referendado para o mercado.
E trazê-los para a SIC é justamente essa virada de chave. Primeiro, porque vão conhecer o universo do café, questão de embalagens, apresentação, maquinário, evoluir na questão da qualidade e, principalmente, se conectar com o mercado comprador. Entender que tem posicionamento diferenciado para o café deles no Brasil e fora dele. A partir do momento que vislumbram a médio e longo prazo produções maiores e outros produtores entram no processo vão saber que tem onde colocar esse café.
Ao posicionar Linhares aqui, colocamos o município no mapa. Queremos mostrar para os atores da SIC, mesmo de forma inicial, que surge uma nova origem de conilon com trabalho de produtores comprometidos com cafés de qualidade como opção para o mercado.
Além do aprendizado e desses contatos, usamos o espaço da Cafeteria Modelo para promover nossos cafés. Vinte produtores participaram dessa Missão na SIC tendo o Sicoob como parceiro. De janeiro a dezembro, o grupo participou de várias ações do nosso planejamento. Entre elas, dias de campo, instalação de terreiros suspensos, que deram salto de qualidade e volume de 2021 para 2022. Cada produtor produzindo 15 sacas de qualidade em média. Sem contar o concurso municipal, onde os três primeiros colocados obtiveram cafés acima de 80 pontos”.
“As feiras têm ajudado demais o produtor a se atentar cada vez mais para a qualidade do café. Existe um movimento genuíno do próprio produtor de fazer um café melhor. De vir aqui na SIC e ver o nome deles lá na frente. Eles se sentem lisonjeados realmente com isso, é algo que traz uma satisfação muito grande.
E falando de evolução, nos últimos dez anos pude acompanhar bastante o processo de qualidade, principalmente no conilon. Tínhamos um café recusado em todo lugar, as pessoas não acreditavam na qualidade dele. À medida que evoluiu em qualidade, até os prêmios em dinheiro dos concursos se equipararam ao arábica. Até isso era um ato discriminatório na qualidade do conilon.
Ainda existe preconceito em alguns países, mas a própria evolução dos produtores com cultivares e clones diferentes e novas práticas na propriedade ajudaram neste processo de qualidade, nas certificações com 4Cs… Tudo isso culmina com melhor qualidade na ponta”. (Jozielton Freire– gerente de mercado da Nater Coop, antiga Coopeavi)
“A SIC é um evento internacional que traz bastante possibilidade de melhoras na tecnologia do café. Eu que ando muito no Espírito Santo tenho visto, desde 2006, uma evolução grande na melhoria da qualidade. Isso só traz muito ganho ao produtor e melhora a qualidade do produto nacional. Precisamos da experiência de quem está no campo. A ideia vem dele, de tudo aquilo que o produtor almeja de melhoria. O recém-lançado fermentador de café, por exemplo, é uma tecnologia avançada e diminui o sacrifício do produtor. Mas pra isso, foi ele que mostrou pra nós que precisava de um equipamento desse jeito. Essa parceria com a Palinialves é muito boa”. (Tomas Miguel- coordenador de vendas da Palinialves no ES)
“De 2021 para cá, tivemos parcerias que contribuíram ainda mais para a qualidade dos cafés dos cooperados e para as pessoas verem de outra forma o conilon do Espírito Santo. Estou há quase dois anos na cooperativa e vi, na prática, como foi esse avanço na melhoria e também na valorização do produto nacionalmente. A SIC é o momento que a gente tem de mostrar isso. Este ano, muitas empresas fecharam negócios, pessoas provaram e atestaram que a qualidade melhorou muito. Durante o cupping com todas as IGs do Brasil, vi o quanto o país é rico, cada lugar com sua característica de café, não tem ninguém melhor ou pior. Todo mundo trabalhando para melhorar a qualidade e falando a mesma língua”. (Júlia Partelli– filha de cafeicultor e barista da Cooabriel)
‘O desenvolvimento de marcas é muito importante na cafeicultura capixaba’ Chico Ribeiro, designer e sócio proprietário da agência Balaio
“A cultura do café no Espírito Santo acompanha gerações e tem diversidade. O Norte, um pouco mais latifundiário, com produtores com áreas maiores dentro de processo específico de colheita e plantio. Daí você vai para as Montanhas e o Caparaó onde tem uma dinâmica um pouco mais de fazendas menores, agricultura familiar. O mais espetacular é a diversidade em um Estado pequeno. Vejo também tem uma característica das pessoas, o que me encanta muito. Com italianos e alemães, por exemplo, você percebe um empreendedorismo muito alto.
No Espírito Santo, você pode ter uma gestão com particularidade de cooperativas, com produtores de café que acreditam muito naquela gestão. A Cooabriel, por exemplo, tinha um sonho de 40 anos de ter marca própria. Havia interesse de se verem representados não só pelo produto. A simbologia em torno dele também era muito importante para eles. A Cafesul, por sua vez, desenvolveu a parte de e-commerce. O desenvolvimento de marcas é muito importante na cafeicultura capixaba. É um viés pelo qual se percebe essa evolução. E aí você tem um fortalecimento por parte das instituições direcionado para as Indicações Geográficas (IGs), com reforço muito grande de imagem. A IG existe, acontece, mas tem um significado de marcas.
O Estado já tem esse significado de marcas de cafés de qualidade, mas também de volume de cafés. Você tem marcas consolidadas de famílias tradicionais. A Real Café Reserva é um exemplo. A Real Café tem marca de commodity, mas também o olhar sobre a nova onda de cafés especiais, tocada por uma terceira geração dentro da empresa.
Nos últimos dez anos, tanto as instituições (cooperativas e associações) quanto os produtores com grau maior de empreendedorismo têm feito suas marcas acontecerem. Exemplo de cafeicultores das Montanhas e do Caparaó, onde famílias super tradicionais que observaram que café torrado e moído consegue ter implementação de faturamento no negócio.
Ainda por parte das grandes cooperativas, estão evoluindo bastante nessa característica de marca para evoluir também na percepção de valor. Se num primeiro momento vendiam café como commodity, agora querem ser parceiros estratégicos das grandes empresas que adquirem esses produtos. Atividades como as feiras da Cooabriel e da Coopeavi (agora Nater Coop) e a Cafesul levantar bandeiras com viés do FairTrade (Comércio Justo).
Além disso, acho espetacular a inserção da mulher na cafeicultura. Para o café especial, além de entregar o empoderamento tão discutido, há uma expectativa muito prolongada. Ela colocou o esforço no café, mas também quis ser protagonista”.
Fonte: Conexão Safra e OCB/ES
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